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Governo continua financiando a lógica manicomial, afirma pesquisadora

Sesa aloca menos de 1% de sua verba na saúde mental e transfere fartos recursos para os “novos manicômios”

Núcleo da Luta Antimanicomial/ES

A lógica manicomial continua sendo priorizada pelo governo do Estado, mais de 37 anos após o nascimento da Reforma Psiquiátrica do Brasil. A conclusão advém da análise dos investimentos feitos pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), nos anos de 2009 a 2021, e do acompanhamento das políticas implementadas nos últimos dois anos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Fênix, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

“O financiamento da Sesa para a Rede de Atenção Psicossocial [RAPS], de 2009 a 2021, mostra uma tendência ao desfinanciamento dos dispositivos antimanicomiais. A maior parte dos recursos vai para hospitais psiquiátricos e medicalização. Ou seja, a tendência do governo do Estado é na contracorrente [da Reforma Psiquiátrica] e na manutenção da lógica manicomial”, afirma Fabíola Xavier Leal, professora do Departamento de Serviço Social e da Pós-graduação em Política Social da Ufes e coordenadora do Grupo Fênix.

Um estudo que traz esses números em detalhes é a dissertação de mestrado da assistente social Lara Campanharo, orientada por ela na Ufes. “O Estado investiu, na saúde mental, menos de 1% de todo o orçamento da saúde pública estadual. O máximo que chegou, nesses 12 anos, foi 0,9%”, expõe.

Dentro desse pequeníssimo percentual do total, menos de um terço foi para a atenção básica de saúde mental. “Encontramos uma tendência de financiamento das instituições hospitalares, com 57,5% de todo o recurso empregado de 2009-2021, principalmente em leitos de hospitais psiquiátricos (48%). Já para os medicamentos, a destinação foi de 18,8%. Não há prioridade para a Rede de Atenção Psicossocial”.

Desprestigiada duplamente, a atenção básica à saúde mental é continuamente sucateada, impedindo que os princípios da Reforma Psiquiátrica sejam alcançados, por meio da Lei nº 10.216/2001. “O que esse cenário revela é a não garantia das ações e serviços extra- hospitalares e de base comunitária, como definido na Política de Saúde Mental, com a continuidade das disputas entre o modelo de cuidado da Reforma Psiquiátrica versus o modelo Manicomial”, compara a acadêmica.

Núcleo da Luta Antimanicomial/ES

O ato da Luta Antimanicomial deste ano, consagrado todo dia 18 de maio, portanto, manterá sua pauta principal, afirma Fabíola Xavier. “Mais do que nunca, o ato, a luta e o chamado para o 18 de maio deste ano é por uma sociedade sem manicômios, com uma rede de cuidados com liberdade, no território, com garantia da participação ativa dos sujeitos, dos familiares, com mais atendimento na atenção básica e na rede especializada, que seriam os centros de atenção psicossocial”.

A demanda na atenção básica chama atenção, ressalta a coordenadora do Grupo Fênix/Ufes. “Há uma defasagem imensa de implementação de CAPS 1, CAPS 2, CAPS infanto-juvenil e CAPS-AD nos territórios e, por isso, a gente vem batendo nessa tecla todos os anos”, afirma, referindo-se aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que, em seus quatro formatos – sendo os chamados AD, voltados para usuários com problemas no consumo de álcool e outras drogas – formam uma das principais unidades formadoras da RAPS, que também engloba estruturas como as residências terapêuticas.

“Residência Terapêutica é uma moradia para pessoas que historicamente ficaram asiladas em instituições psiquiátricas. São dispositivos da RAPS/SUS e integram o eixo da desinstitucionalização. São serviços 100% SUS e antimanicomiais. São 19 no Estado, sendo 18 sob gestão da Sesa e um sob gestão da Prefeitura de Vitória”, explica.

Tendência se mantém

Os anos de 2022 e 2023, que não constam na dissertação de Lara Campanharo, é possível observar a manutenção da mesma lógica manicomial, avalia Fabíola Xavier. “Há uma permanência desse desinvestimento na RAPS. Temos acompanhado as pautas do Conselho Estadual de Saúde, que seria o órgão principal de controle social da política, e vemos que a saúde mental não é pautada: não houve abertura nem investimento em nenhum serviço, nem em residência terapêutica nem em centro de atenção psicossocial [CAPS]. Essas tendências se permanecem nos últimos dois anos”.

A análise é possível, conta, apesar da demora e dificuldade em obter dados oficiais prejudicar uma análise mais atual. “Os relatórios de gestão demoram a ser disponibilizados. Nós estamos em maio e alguns documentos de 2023 ainda não estão publicizados, mas a gente consegue observar uma manutenção dessa tendência dos últimos doze anos”.

Hospital psiquiátrico

A determinação do fim dos hospitais psiquiátricos judiciais em todo o país, ressalva Fabíola Xavier, talvez mexa um pouco com a lógica histórica. “Pode ser que o cenário de 2024 se modifique, principalmente devido ao financiamento de residências terapêuticas, por conta da desinstitucionalização do UCTP, o manicômio capixaba judiciário”, avalia.

“A gente tem uma previsão de aumento de recursos para criação de novas residências para absorver parte dessa demanda e também já tem previsão de implementação de novos CAPS no Estado. Então nesse ano de 2024, pode ser que no segundo semestre, um pouco desse cenário seja modificado”, reforça.

Leonardo Sá

‘Novos Manicômios’

Outro viés dos investimentos públicos em saúde mental que vai na contramão da Reforma Psiquiátrica são os fartos recursos transferidos para as chamadas “comunidades terapêuticas” (CTs), clínicas privadas que insistem na lógica manicomial.

Em reportagem do portal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por ocasião do 18 de maio de 2022, a professora-pesquisadora Ariadna Patrícia Alvarez, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), destacou a violação de direitos humanos dessas instituições, confirmadas por meio de inspeções realizadas em CTs de vários estados, como trabalho forçado, supressão de alimentação, privação de sono e violência física praticada contra os internos. “De terapêuticas elas não têm nada”, ironizou. Não à toa, as comunidades são frequentemente identificadas como os “novos manicômios” pelo movimento antimanicomial, destacou a reportagem.

“As comunidades terapêuticas não são SUS, nem SUAS [Serviço Único da Assistência Social]. Ficam no limbo da política pública, ainda que recebam muita grana do poder público (federal, estadual e municipal). São entidades da sociedade civil, de cunho religioso na maioria. E geralmente atendem pessoas em uso de drogas”, reforça Fabíola Xavier.

“Elas não são defendidas sob nenhum aspecto pelo SUS e pela luta antimanicomial. Atuam na perspectiva manicomial e são um retrocesso para sociedade que precisa de atendimento na área de álcool e outras drogas. Violam vários tipos de direitos. No Espírito Santo, denunciamos a Rede Abraço, que é a política de governo que financia exclusivamente esse retrocesso”, acrescenta.

A pesquisa de Lara Campanharo tem dados de investimentos públicos feitos pelo Espírito Santo nas CTs entre 2013 e 2020, no âmbito da Política sobre Drogas, relata Fabíola. Entre 2013 e 2014, o aumento dos gastos com essa política foi de 400% e o número de CTs credenciadas, de oito para 17. Em 2020, voltou para oito. Em 2014, foram destinados R$ 8,3 milhões às CTs, “o que representou 65,24 % do montante destinado à gestão da política. Esse foi o ano com maior número de instituições credenciadas”, assinala a dissertação.

Núcleo da Luta Antimanicomial/ES

“Já entre os anos de 2015 e 2019, observa-se redução na habilitação das CT’s e dos gastos por meio dos Editais. Porém, apesar dessa tentativa de redução, constata-se que no ano de 2020 o governo manteve, com tendência crescente, os recursos destinados à gestão da Política sobre drogas, retomando uma lógica de ampliação da oferta de vagas nas CT’s”, compara.

E em agosto de 2021, complementa, “o atual governo estadual ampliou o número de vagas para as CT’s de 200 para 400”, ressalta, citando o Edital nº 01/2021, de Credenciamento, publicada de forma conjunta entre a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e a Subsecretaria de Estado de Políticas sobre Drogas (SEDH/SESD), esta última, ligada à Secretaria de Estado de Governo (SEG).

“De 2013 a 2020, identificamos 26 entidades que receberam recursos, com justificativa de se enquadrem nas exigências como CT’s. Quanto à origem, foram criadas principalmente após o ano 2000 (66%)”, acrescenta.

Atos em 2024

“O ato do dia 17 visa também denunciar esse destino do recurso público pra instituições manicomiais. Além do recurso da Sesa para hospitais psiquiátricos, tem esse recurso paralelo da Rede Abraço que não abraça ninguém. Ao contrário, sufoca!!!”, metaforiza. “Se somarmos os recursos públicos pra serviços manicomiais, o Estado, infelizmente, dispara nesse (des)investimento. Retrocesso capixaba”, lamenta.

A Grande Vitória terá pelo menos dois atos da luta antimanicomial este ano. Um deles em Cariacica, nesta quinta-feira (16), às 9h, na Praça Castelo Branco. E outro em Vitória, na Praça Costa Pereira, na sexta-feira (17), às 13h. Além do Grupo Fênix, apoiam o ato da Capital o Triplex Vermelho, o Bloco que Loucura e a Guarda Civil Municipal. A organização é do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial – ES.

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