Diante dos dados da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) que mostram que a Covid-19 tem matado mais negros (42,8%) do que brancos (19%) e amarelos (7,9%), o Movimento Negro Capixaba afirma que faltam propostas do governo do Estado para prevenção ao coronavírus em meio à população negra. Para o integrante do Coletivo Negrada, João Victor dos Santos, o número pode ser ainda maior, pois não há informações sobre a raça/cor de 30,1% dos mortos. “A infecção é democrática, mas o óbito não é, nem nunca será”, destaca.
O militante do Negrada recorda que a divulgação dos dados referentes ao pertencimento racial e ao gênero das pessoas infectadas e mortas pelo coronavírus somente foi possível depois da requisição feita pelo Movimento Negro Capixaba no dia 14 de abril. Na ocasião, a coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), Vanda Vieira, afirmou que a ausência de dados sobre a população negra em meio à pandemia do coronavírus tratava-se de racismo institucional.
Para ela, não existiu a preocupação em coletar a informação sobre raça/cor, apesar das fichas dos pacientes, que são padronizadas e enviadas para o Ministério da Saúde, terem esse quesito para preenchimento. “Não querem pensar política para esse público”, afirma Vanda.
Além da divulgação dos dados, também foi solicitada inclusão de profissionais negros, pesquisadores e militantes das desigualdades raciais e sociais junto ao Comitê de Operações Emergenciais (COE), mas o Movimento Negro não obteve resposta por parte do governo. Para João Victor, essa é mais uma prova do racismo institucional por parte do poder público.
“Precisamos no Comitê de pessoas que entendem a realidade da população negra, que estudam a temática racial. Se o Estado já tivesse feito um plano emergencial nas periferias, favelas e comunidades quilombolas, o cenário de letalidade entre a população negra durante a pandemia não seria esse que vemos agora”, lamenta. Ele recorda que nas comunidades populares, onde a maioria da população é negra, estão surgindo cada vez mais campanhas de solidariedade para minimizar os impactos da pandemia. “É a população negra dizendo que é nós por nós, e não o estado por nós”, afirma.
Vulnerabilidade da população negra
Segundo João Victor, os negros são mais vulneráveis à Covid-19, uma vez que doenças crônicas como hipertensão, diabetes e tuberculose são comuns nesse grupo por causa de problemas como a precariedade da alimentação e a ausência de saneamento básico nas comunidades populares, habitadas majoritariamente por negros.
Comparando o cenário da pandemia no exterior e no Brasil, a professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Maria Helena Elpídio, afirma que, apesar do avanço do neoliberalismo, nos países da Europa, que têm uma economia mais desenvolvida e um aparato social maior, as desigualdades têm um impacto menor durante a pandemia.
Enquanto isso, no Brasil, a população negra convive com a precarização do trabalho, a ausência de direitos como saúde e acesso à informação por meio da educação. “O coronavírus não escolhe pessoas, mas sua letalidade é seletiva, pois vai encontrar ambiente favorável ou não”, explica. A professora acrescenta que a falta de infraestrutura nas comunidades populares pode contribuir para os casos de subnotificação de infecções e mortes por Covid na população negra, já que muitos nem ao menos têm condições de procurar os serviços de saúde, concentrados no grandes centros.
Maria Helena salienta que sempre se lutou pelo direito de ir e vir, mas agora, principalmente estas pessoas estão sendo usurpadas do direito de ficar em casa. “São pessoas que não podem ficar em casa, pois o que ganham no trabalho naquele dia é o que vai definir se irão comer ou não naquele mesmo dia”, diz.
A professora explica que a dinâmica de proliferação e letalidade do coronavírus no Espírito Santo será semelhante a de outros estados brasileiros. Maria Helena recorda que no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, o vírus apareceu primeiro nos bairros nobres por ter chegado de fora para dentro, ou seja, do exterior para o Brasil. Depois, atingiu as comunidades populares, onde a letalidade está sendo maior.
“A tendência é que aconteça a mesma coisa, ainda mais com a proximidade de liberação do comércio. Uma coisa é você colocar uma máscara, ir ao supermercado, fazer suas compras e voltar para casa. Outra é a pessoa ter que ficar oito, dez horas por dia no ambiente de trabalho, muitas vezes atendendo ao público”, destaca Maria Helena, que enfatiza que a maioria dos trabalhadores que terão que se submeter a isso são das comunidades populares, em grande parte negros e negras.
Para Maria Helena, a pandemia prova que não bastam leituras econômicas e da área médica, é preciso também que se faça a leitura social. “Tem a Covid e o pós-Covid, que vai deixar muitos traumas. Precisamos refletir sobre o arraso feito no Sistema Único de Saúde, na política de trabalho e na ciência. Estamos sofrendo as consequências de tudo isso”, afirma
Comunidades quilombolas
Quando reivindicou a divulgação dos dados sobre a população negra em meio à pandemia do coronavírus, o Movimento Negro incluiu as comunidades quilombolas, mas até o momento não houve nenhum caso de infecção, segundo o professor do Departamento de Ciências Sociais da Ufes, Osvaldo Martins, que tem feito esse monitoramento com auxílio de lideranças locais.
Entretanto, os efeitos da pandemia, segundo ele, têm sido notados nessas comunidades. A que mais tem sofrido, como informa, é a de Porto Grande, em Conceição da Barra, norte do Estado. O professor explica a maioria é pescador e não tem conseguido vender os mariscos.
Em outras comunidades, onde muitos vivem da agricultura familiar, como as de São Mateus, o fechamento das feiras prejudicou as vendas e o pagamento dos alimentos vendidos por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) está atrasado. Muitos que tinham emprego em outras áreas, segundo Osvaldo, foram demitidos.