Familiares dizem que o hospital exige que compareçam pessoalmente ao local, quebrando o isolamento em prevenção à Covid-19
Em meio à pandemia do coronavírus, parentes de internos do Hospital Pedro Fontes, no bairro Padre Matias, em Cariacica, procuram a instituição para saber informações sobre seus familiares. Entretanto, há relatos de que o hospital não atende aos telefonemas e, quando o faz, afirma que não serão dadas informações, cabendo à pessoa comparecer pessoalmente ao local, o que quebra o isolamento social em prevenção à Covid-19.
A jornalista Mônica Oliveira, cuja mãe é interna do Pedro Fontes, é uma das pessoas que têm sofrido com a recusa por parte do hospital no que diz respeito a informações sobre o estado de saúde dos pacientes. Ela, que atualmente não mora no Espírito Santo, afirma que telefonou para lá algumas vezes e era avisada de que o hospital retornaria a ligação com as informações solicitadas, o que não aconteceu. Depois, segundo Mônica, o telefone passou a tocar sem que ninguém o atendesse.
Para obter informações, a jornalista contou com o auxílio de uma prima, moradora de Vitória, que também telefonou e foi avisada de que deveria comparecer pessoalmente ao local. Mônica relata um histórico de violações de direitos contra ela e sua mãe por parte do Hospital Pedro Fontes. O caso mais recente de maus-tratos, de acordo com a jornalista, foi em agosto de 2019, quando familiares identificaram queimaduras e manchas roxas no corpo da interna e avisaram à filha.
Queimaduras. Créditos: Arquivo Pessoal
“Liguei para a enfermaria do hospital e fui atendida pela assistente social. Pedi para falar com a enfermeira chefe, sem sucesso. Deixei meu número para que a enfermeira me retornasse, o que não aconteceu. No mesmo dia, um tempo depois, retornei a ligação e fui atendida por uma técnica de enfermagem, que não soube me esclarecer o ocorrido e, diante de toda a conversa, ao final, apenas disse que registraria no livro de ocorrência na enfermaria”, recorda Mônica.
A jornalista conta, ainda, que em julho de 2017 sua mãe quase veio a óbito por sobrecarga de remédios e exposição ao frio, pois foi colocada para dormir no chão. Na época, relata Mônica, ela fez denúncia junto ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), Delegacia do Idoso, ouvidoria da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), além de dar conhecimento do ocorrido à administração do hospital.
Mônica relata que, diante das denúncias, foram implementadas algumas mudanças com o objetivo de humanizar o atendimento, como renovação da equipe técnica de enfermagem e presença permanente no quadro funcional de profissionais como farmacêutico. Entretanto, a jornalista afirma que em meados de 2018 a equipe foi sendo desfalcada.
Depósito Humano
O Hospital Pedro Fontes foi criado em 1937 para isolar pacientes com Hanseníase, doença também conhecida como Lepra, normalmente retirados de maneira violenta do convívio familiar e social. Os filhos dos internos, por sua vez, eram encaminhados para o Educandário Alzira Bley, também em Cariacica, criado em 1940. O leprosário, também chamado de Colônia de Itanhenga, nasceu no contexto da política de isolamento e internação compulsórios de pacientes com Hanseníase no primeiro governo do presidente Getúlio Vargas.
Colônias do Hospital Pedro Fontes. Créditos: IJSN
Com a descoberta da cura da doença, o fim da internação compulsória aconteceu em 1962, mas há registros de que continuaram a acontecer, em todo o país, até a década de 80. Ainda hoje, no Hospital Pedro Fontes, há internos da época do isolamento compulsório, que estão lá há décadas e a quem foi negada uma gama de direitos básicos, como o convívio social e o contato com a família, vivendo a privação de liberdade. Atualmente eles convivem, na unidade hospitalar, com internos que não têm Hanseníase, como a mãe de Mônica.
A jornalista afirma que, diante da impossibilidade de cuidar da mãe, recorreu à Justiça, com base no Estatuto do Idoso, para que o Governo do Estado encaminhasse sua mãe, que tem Mal de Alzheimer avançado, a uma casa de apoio onde pudesse ter os cuidados necessários. Foi assim que a senhora foi encaminhada para o Pedro Fontes, tendo a filha como curadora, como explica Mônica, com direito de acompanhar toda a assistência dada pelo Estado. Apesar de sua mãe ter sido encaminhada para o Pedro Fontes, Mônica destaca que esse local não é de fato uma casa de apoio.
“A decisão judicial de o Estado acolher minha mãe não foi cumprida integralmente, por isso ela está em uma colônia para pessoas com hanseníase, portanto, não adequada ao caso dela, que tem Alzheimer. Esse fato é de conhecimento da administração do hospital, inclusive por pedidos meus de que a instituição emita uma declaração dessa inadequação para o acolhimento do caso da minha mãe. A administração nunca quis emitir a declaração para que peticionasse ao Estado o devido cumprimento da ordem judicial”, explica Mônica.
Para a jornalista, o Pedro Fontes preserva ainda hoje características que vigoram desde sua criação, na década de 30, como o fato de ser um depósito humano, um local onde a lógica do isolamento e da violência ainda vigoram. Essa lógica, segundo Mônica, está evidente em toda a dinâmica da política de tratamento. Mônica acredita que as denúncias feitas por ela causam incômodo. “A lógica da violência institucional normalizada ficou impregnada e os responsáveis pelo hospital se sentem invadidos quando alguém busca burlar essa lógica”, diz.
Doentes mentais, os novos hansenianos
Além da mãe de Mônica, outros internos do Pedro Fontes não têm Hanseníase. Grande parte deles são pacientes oriundos de manicômios que encerraram suas atividades. Segundo o integrante do Movimento da Luta Antimanicomial no Espírito Santo, André Ferreira, essas pessoas vieram principalmente do Adauto Botelho, em Cariacica, mas também há egressos do Santa Isabel, em Cachoeiro de Itapemirim, sul do Estado.
Adauto Botelho. Créditos: Sesa
De acordo com André, esses e outros manicômios foram fechados por causa da Lei nº 10.216, conhecida como lei da reforma psiquiátrica, promulgada pelo Governo Federal em 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
“A lei da reforma psiquiátrica prevê a instalação de uma rede de atenção psicossocial e o fechamento dos manicômios. Como não houve respeito à lei, prefeituras como a de Cariacica mandaram os internos do Adauto Botelho para o Pedro Fontes”, relata André. Ele destaca que, embora o hospital seja estadual, se o município não pressionar para a efetivação da rede o Governo do Estado não se mexe, muito menos o Governo Federal, já que a implantação dever ser promovida pelos três.
André aponta que o Pedro Fontes recebe os pacientes com problemas mentais, mas não tem algo formatado para eles e a saúde terapêutica é ausente, não havendo atividades que possibilitem às pessoas voltar ao convívio social. “O objetivo não deveria ser fazer a pessoa ficar ali, mas sim adquirir autonomia”, defende. Ele afirma que, no Pedro Fontes, ainda permanece a ideia de reclusão, sendo os doentes mentais os novos hansenianos.
Para o integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos no Espírito Santo (MNDH), Gilmar Ferreira, o Pedro Fontes, assim como outros espaços de reclusão, tem a dificuldade de fiscalização dos órgãos públicos e dos conselhos. Essa afirmação é confirmada pelo representante da Associação de Pais de Alunos do Estado do Espírito Santo (Assopaes) no Conselho Estadual de Saúde, Silvio Nascimento Ferreira.
O conselheiro afirma que existe a Comissão de Acompanhamento aos Conselhos Gestores, que visita os conselhos gestores das unidades para saber como está o andamento, como estão os trabalhos, se estão tendo facilidade de realizá-los. “Essa comissão é paritária, tem membros gestores, servidores e usuários, mas toda vez que vão fazer visitas aos conselhos gestores e aproveitam para visitar as unidades, quando chegam lá as coisas já estão praticamente organizadas”, relata.
Silvio afirma que isso acontece porque a informação sobre a visita sai do apoio administrativo do conselho. “Não é possível fazer visita surpresa porque a gente depende do transporte da Sesa, do carro que a Sesa tem, que o conselho tem. A gente precisa do apoio deles, e para fazer visita precisamos dizer que vai a um determinado lugar. E a gente não consegue fazer esse tipo de visita da noite para o dia”, conta Silvio, que afirma que os conselheiros “procuram fazer de tudo para a coisa sair organizada”.
Sílvio afirma que em 18 de março, por causa da pandemia do coronavírus, foi oficializada a resolução 1161/2020, que, de acordo com ele, impossibilitou o trabalho dos conselheiros. “No artigo dois eles engessaram tanto os conselheiros estaduais quanto os conselheiros gestores de unidades hospitalares de poderem fazer trabalho de fiscalização e acompanhar a Sesa. Todos esses gastos que estão sendo feitos, todos decretos que o secretário tem baixado, têm sido feito à revelia, sem discutir com ninguém, sem debater com ninguém, aproveitando o decreto de pandemia, que confere a ele esse poder”, diz
Educandário Alzira Bley
Embora não tenha sido infectada pela Hanseníase, a aposentada Maria Augusta Abreu mesmo assim sentiu na pele a violência da política de isolamento. Ela conta que aos seis anos de idade seus pais e sua irmã foram para o Pedro Fontes, pois estavam com a doença. A ela, restou ser separada de sua família e encaminhada para o Educandário Alzira Bley, para onde eram enviadas as crianças filhas de hansenianos.
Educandário.Créditos: EAB
Maria Augusta recorda que, ao visitar seus familiares, um portão sempre os separava, impedindo qualquer tipo de contato físico. A aposentada ficou no Alzira Bley até os 17 anos, em 1961, quando casou. Porém, sua saída não encerrou sua ligação ao Pedro Fontes. Em 1991, sua mãe, já curada da Hanseníase, ficou viúva. Com o marido também falecido, Maria Augusta foi morar no Pedro Fontes para fazer companhia à mãe.
Maria Augusta Abreu. Créditos: Arquivo Pessoal
Maria Augusta conheceu todas as faces da segregação no local. Além de interna no Alzira Bley, de ver o sofrimento da família no Pedro Fontes e ter morado no Hospital depois de adulta, ela também trabalhou na unidade hospitalar por meio de uma empresa terceirizada que fornecia a alimentação, sendo demitida no início dos anos 2000.
“Serviam pouca comida e na hora de recolher os pratos os pacientes queriam mais. Eu questionava a qualidade da comida. Muitas vezes serviam pedaços duros de galinha e alguns pacientes nem tinham dente. Me demitiram porque reclamei da má qualidade da comida para a nutricionista”, relata.
A ex-interna chegou a representar o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) no Conselho Municipal de Saúde de Cariacica, onde atua ainda hoje, mas como representante da Pastoral Operária da Arquidiocese de Vitória. Ela afirma que, no Espírito Santo, o movimento não obteve grandes avanços como em outros locais.
Uma das reivindicações do movimento é a regularização dos imóveis localizados ao redor da unidade hospitalar, para que a posse seja passada às pessoas curadas que ainda vivem no local, garantindo também o direito dos herdeiros. Em 2007 foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei nº 11.520, oriunda da Medida Provisória (MP) 373/2007, que instituiu pensão vitalícia às pessoas atingidas pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e internação compulsórios em hospitais-colônia até 31 de dezembro de 1986.
Nota Sesa
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), em nota enviada a Século Diário, afirma que diante da pandemia da Covid-19, foram adotadas medidas de prevenção de acordo com as legislações vigentes, sendo instituído o Protocolo de Prevenção de Enfrentamento a Doença. “As visitas não foram interrompidas e ocorrem via ambulatório por meio do Serviço Social com as famílias; quando necessário, o visitante é encaminhado para as referências clínicas, farmacêutica e de enfermagem”, contesta.
A secretaria diz, ainda, que o acesso às enfermarias não é permitido para a segurança dos pacientes que compõem o grupo de risco para a doença, e que os contatos com familiares são realizados “via telefone até duas vezes por semana ou sempre que necessários”.
A nota também ressalta que o hospital não recebeu nenhum relato de maus-tratos praticados em suas dependências e que “é periodicamente fiscalizado por órgãos de controle, movimentos sociais e sociedade civil e adota as melhores práticas de assistência aos pacientes”.
O acesso a prontuário médico é permitido ao paciente e seu representante legal, conforme estabelecido em lei, e deve ser solicitado via sistema de protocolo presencial, como informa. “O Hospital Pedro Fontes atende pacientes do antigo isolamento compulsório e também dá suporte aos demais hospitais da rede estadual, não existindo paciente ou morador com hanseníase ativa ou reativa”, conclui.