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Presidente da Federação de Capoeira do Espírito Santo (Fecaes), Alcebíades Milton Cabral, o Mestre Cabral, que morreu nessa segunda-feira (23) após sofrer um choque anafilático por intoxicação alimentar – o sepultamento será às 16 horas desta terça no Cemitério Parque da Paz, em Vila Velha – teve importante atuação na chamada refundação do movimento negro capixaba pós-ditadura militar.
Mestre Cabral foi atuante no que o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Gustavo Forde, estudioso do movimento negro capixaba, chama de “explosão da negritude capixaba”, período de grande efervescência a partir do fim dos anos 70 e início dos anos 80 quando os movimentos sociais começam a reorganizar no Brasil num período de distensão da ditadura.
Participou junto a vários outros militantes do movimento negro capixaba da fundação do Centro de Estudos da Cultura Negra do Espírito Santo (Cecun) e também criou o Grupo de Capoeira Gangazumba. “Teve uma importância muito grande tanto para o movimento negro como para a capoeira capixaba, fazendo um diálogo estreito entre ambos. Sempre fez uma capoeira muito raiz, combativa, posicionada politicamente na perspectiva de consolidação do povo negro”.
Cabral foi um dos protagonistas desse processo de fortalecimento do movimento negro, tendo atuado ativamente em momentos como a “Descomemoração do Centenário da Abolição”, em 1988, quando o movimento negro questionou a intenção do Estado brasileiro em celebrar a ocasião como representação da liberdade dos negros no país. No Espírito Santo, aconteceu um grande evento sobre o tema, contando com presença de grandes nomes históricos da luta antirracista no Espírito Santo.
“O movimento negro dizia que não havia o que comemorar no centenário da Lei Áurea. Queria discutir se houve abolição realmente”, diz Gustavo Forde. Ele aponta que “descomemoração” era no sentido de questionar a Princesa Isabel e a Lei Áurea como símbolos, propondo em seu lugar a entrada de Zumbi dos Palmares e a celebração do Dia da Consciência Negra, algo que foi ser reconhecido pelo estado oficialmente apenas nos anos 2000.
Outro evento marcante que contou com participação ativa de Alcebíades Cabral foram os debates “O negro e a Constituinte”, também em 1988, quando o Brasil discutia sua nova Constituição, ajudando a formular propostas para a inclusão de direitos na Carta Magna. Outro fato marcante em que participou foi o Encontro de Negros Sul-Sudeste, que aconteceu em Viana em 1990, possibilitando maior articulação entre militantes e organizações negras de vários estados do País.
Gustavo Forde lembra também do engajamento de Cabral na vinda de Nelson Mandela ao Espírito Santo, em 1991, onde foi recebido por Albuíno Azeredo, primeiro e único governador negro do Estado, e discursou para uma multidão no estádio Engenheiro Alencar de Araripe, em Cariacica. Na época, Mandela havia saído da prisão após décadas de cárcere e denunciava pelo mundo o regime de segregação racial do regime conhecido como “apartheid”, que terminou de fato a partir de sua eleição como presidente da África do Sul.
Na capoeira, a atuação do Mestre Cabral se destacou justamente pela proximidade com as pautas do movimento negro, como combate ao racismo e valorização da cultura negra. Iniciou na capoeira ainda criança no Rio de Janeiro, onde foi aluno do Mestre Chita, quem lhe concedeu o título de mestre em 1981. Ao vir morar no Espírito Santo, fundou o grupo Gangazumba e também presidiu a Fecaes, que realizou várias capacitações e lutas por políticas públicas para a capoeira.
O pedagogo Luiz Paulo Lima, mestre de capoeira mais antigo em atividade no Espírito Santo, lembra da atuação de Mestre Cabral em sua constante luta pela igualdade entre negros e brancos, ressaltando que os negros não “eram escravos” e sim “foram escravizados”.
Luiz Paulo menciona que Cabal buscava entender a capoeira para além da visão de esporte e lazer e das questões comerciais que envolvem as aulas e graduações, buscando a raiz e essência da manifestação criada por negros escravizados como forma de resistência. Se preocupava em aumentar a participação da população negra na capoeira, que hoje considera ser praticada em maioria por brancos.
Tinha grande interesse em inserir a capoeira nas escolas, como parte da implementação da Lei 10.639, que prevê o ensino da cultura afrobrasileira no sistema de ensino. Uma lei que o movimento negro ainda luta para implementar de fato no País.
Nós, jornalistas, sabemos bem como funcionam as questões do valor-notícia na hora da seleção de manchetes, especialmente na imprensa ávida por audiência. Mas parece triste, muito triste, que com toda essa trajetória, Alcebíades Cabral termine na páginas dos jornais do Estado em que tanto se dedicou em manchetes como o “mestre de capoeira que morreu após comer siri”. Não soa desrespeitoso?
Deixo a reflexão do professor Gustavo Forde: “Foi responsável por abrir caminhos, para muitos de nós, que chegamos depois. (…) Mestre Cabral, receba nossos aplausos! (aplausos de pé!)”.