Em meio a crises de grandes proporções nos presídios brasileiros, com 62 detentos mortos no Pará e um sistema conhecido internacionalmente por ser violador de direitos fundamentais, incluindo as masmorras da gestão Paulo Hartung no Espírito Santo, o governo Jair Bolsonaro (PSL), na figura da mandatária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, retirou o apoio administrativo e limitou o acesso de peritos às dependências do prédio onde funciona o Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT).
Criado em 2003, o Mecanismo é fruto de compromisso do Brasil junto à Organização das Nações Unidas (ONU) para erradicar a tortura no país, sobretudo no sistema prisional, onde ocorrem graves violações sob a tutela do próprio Estado. O MNPCT faz estudos sobre crimes de direitos humanos. Foram seus peritos, por exemplo, que elaboraram relatórios sobre a situação de presídios como o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, onde 111 presos foram mortos em massacres de 2017 a 2019.
A nova retaliação ocorre dois meses depois do decreto do presidente Jair Bolsonaro que exonerou todos os peritos do MNPCT, que deixaram de ser funcionários públicos para atuar apenas como voluntários, o que acaba por inviabilizar a atuação do órgão. Para elaboração dos relatórios sobre violações aos direitos humanos são necessárias visitas aos presídios e todo um trabalho de análise e escrita, o que exige dedicação exclusiva. Em fevereiro, os profissionais já tinham acusado o ministério comandado por Damares Alves de impedir uma viagem para apurar denúncias no Ceará. Desta vez, em carta aberta, o grupo diz que “a autonomia e independência de trabalho ficam concretamente inviabilizadas”.
Em ofício assinado no último dia 2, a secretaria de Proteção Global do Ministério de Damares determinou que o acesso dos peritos seja controlado por meio de solicitação a cada entrada, tornou o uso de salas internas condicionado a agendamento prévio, retirou o acesso interno ao Sistema Eletrônico de Informação (SEI) por onde eram mantidas as atividades e redistribuiu os funcionários técnicos alocados no mecanismo. Na prática, os peritos estão trabalhando sem receber há cerca de dois meses, e tentam reverter a determinação na Justiça.
“Este Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura vem a público externar seu mais absoluto repudio à interferência direta do governo federal e o desmonte vivenciado na política nacional de prevenção e combate à tortura, e clama para que todos possam fazer coro para impedir o vilipêndio e sucateamento das atividades do estado brasileiro que visam a investigar e responsabilizá-lo pelos crimes de tortura cometidos no passado e no presente”, relatam no texto.
Para Gilmar Ferreira, integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o governo vem utilizando medidas de subterfúgios para rebaixar os instrumentos normativos legais que custaram muito sacrifício à população que busca, com o apoio de organismos internacionais, erradicar as práticas absurdas da tortura e das violações de direitos humanos, que ocorrem sobretudo nos locais de privação de liberdade e de longa permanência.
“Essa medida ocorre exatamente no momento de aprofundamento dos problemas no sistema prisional brasileiro e de ocorrências sucessivas de assassinatos coletivos como o de Altamira no Pará. É estarrecedor ver o governo Federal achar que o trabalho dos peritos equivale e merece o mesmo tratamento de integrantes de conselhos e comitês. Todos são de muita relevância, porém diferentes. Os peritos precisam de dedicação exclusiva e condições para realizar o seu trabalho”.
ONU já pediu explicações
O subcomitê da Organização das Nações Unidas para a prevenção da tortura já pediu reuniões com a Missão Permanente do Brasil em Genebra para cobrar explicações sobre o decreto do presidente Jair Bolsonaro que esvaziou o Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNCPT). Segundo comunicado da ONU, “há sérias preocupações de que essas medidas enfraqueçam a prevenção da tortura no país”.
Pelo decreto presidencial 9.831, de junho, Bolsonaro exonerou 11 técnicos do órgão e extinguiu a remuneração dos especialistas, responsáveis por monitorar a situação do combate à tortura no país em diversas instituições de privação de liberdade, como presídios e hospitais psiquiátricos. Críticos da medida argumentam que isso significa concretamente o fim do combate à prática de tortura no Brasil.
O decreto presidencial motivou uma denúncia contra Jair Bolsonaro perante as Nações Unidas, feita pelas ONGs Justiça Global, Terra de Direitos e Instituto de Defensores de Direitos Humanos, nos dias seguintes à publicação.
Internamente, quem tem lutado contra a medida arbitrária de Bolsonaro é o senador Fabiano Contarato (Rede), que apresentou um projeto (PDL 395/2019) para sustar os efeitos do decreto que exonerou os integrantes do MNPCT.
O senador destaca que o decreto 9.831/2019 vai além da exoneração dos então 11 ocupantes dos cargos no Mecanismo Nacional. Na verdade, recria a função de perito, de forma que os profissionais passarão a ter participação não remunerada. Para Contarato, o decreto trata, na prática, do desmonte e da inviabilização do combate à tortura e às violações de direitos humanos em estabelecimentos prisionais, hospitais psiquiátricos, abrigos de idosos e de crianças.