Iniciativas do tipo têm surgido por todo Brasil como estratégia de denúncia e combate à fome
No dia 13 de março, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) inaugurou na periferia de São Paulo sua primeira Cozinha Solidária, oferecendo refeições gratuitas diante do aumento da fome no país. O projeto se espalhou por diversos estados e deve também chegar ao Espírito Santo em breve. Embora o MTST não tenha atuação no território capixaba, sua iniciativa serviu de inspiração para uma série de organizações ligadas à Frente Povo Sem Medo, do qual o movimento sem-teto também faz parte.
O impulsionamento da iniciativa veio de grupos que compõem a frente, como as Brigadas Populares, Primavera Socialista, Resistência, Coletivo Agitação Antifascista, União da Juventude Comunista (UJC), além de outros apoiadores como a Pastoral do Povo da Rua e Rede Urbana Capixaba de Agroecologia (RUCA).
“A proposta da Cozinha Solidária no Espírito Santo surge nesse momento em que a gente vive grande ampliação da desigualdade, com iniciativas de solidariedade por todo Brasil. Nesse momento em que o Estado não cumpre seu dever com auxílio emergencial adequado e vê pessoas entrando no mapa da fome e as campanhas de solidariedade tomando espaço no cenário da política”, diz Isabella Mamedi, das Brigadas Populares.
De acordo com ela, o objetivo mais urgente é saciar a fome das pessoas, mas o projeto também quer provocar discussões sobre soberania e segurança alimentar, alimentação saudável, produção de distribuição de alimentos, cultura alimentar e especialmente sobre as causas do crescimento da fome no país.
Assim como no projeto que vem sendo desenvolvido pelo MTST, a intenção é oferecer ao máximo alimentos saudáveis oriundos da agricultura familiar. No Espírito Santo, já foram iniciados diálogos com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e CSA Sapê do Norte, que articula agricultores quilombolas.
Local de instalação já foi definido
O lugar escolhido para a criação da primeira Cozinha Solidária do Estado foi o bairro de Itararé, que faz parte do conjunto de bairro chamado como Território do Bem, em Vitória. A produção das refeições será feita em espaço cedido pela Paróquia Santa Teresa de Calcutá. Devido à situação de pandemia, as Cozinhas Solidárias têm realizado apenas a distribuição de marmitas, evitando o consumo no local para não causar aglomerações, o que deve ser mantido na iniciativa capixaba.
A advogada Josi Santos, militante do Círculo Palmarino e integrante do Fórum de Juventude do Território do Bem, analisa que a pandemia de Covid-19 afetou drasticamente muitas famílias que vivem nos bairros do entorno onde será instalada a Cozinha Solidária. Muitos que viviam de trabalhos informais tiveram sua renda fortemente afetada, outros perderam empregos e alguns conseguiram criar pequenos empreendimentos. “Mas, a realidade da maioria das famílias do Território do Bem é de total abandono e descaso do poder público. Pude observar que muitas delas não tem o mínimo necessário para suprir a nutrição diária, falta realmente comida nos lares e isso é ignorado pelo poder público e muitas vezes por alguns moradores da comunidade”, relata Josi.
Ao participar de ações de distribuição de alimentos às famílias em maior situação de vulnerabilidade, ela e outros ativistas perceberam a urgência de acesso a alimentos básicos para muitas delas, que só conseguem suprir a necessidade alimentar básica graças a doações, pois algumas têm o Bolsa Família como única renda atualmente. “Acredito que a instalação da cozinha solidária, além de ser um projeto inovador, vai minimizar um pouco do sofrimento dessas famílias, trazer um pouco de acolhimento e motivar os moradores, despertando o espírito colaborativo”, considera a advogada.
Já com o local de atuação definido, tanto pela disponibilidade de espaço com cozinha como pela forte articulação do movimento comunitário da região, a articulação para criação da Cozinha Solidária no Território do Bem ainda está aberta para pessoas e entidades que queiram colaborar, que devem procurar alguma das organizações já envolvidas no projeto. Em breve, o movimento deve criar páginas nas redes sociais e iniciar uma campanha de doações para poder viabilizar a aquisição e compra de alimentos, já que as refeições serão distribuídas gratuitamente.
Fome cresce no Brasil
Depois de sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2014, a situação de insegurança alimentar vem se agravando no Brasil nos últimos anos. De acordo com a pesquisa Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil, publicada em este ano pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, levantamentos anteriores mostraram que entre 2004 e 2013 houve progresso na garantia da segurança alimentar. A inversão dessa situação começou a ser notada a partir dos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar de 2017-2018, com agravamento a partir da pandemia.
O estudo, que teve como base uma amostra de 2180 domicílios urbanos e rurais em todas as regiões do país, apontou a partir de dados probabilísticos que de mais de 22 milhões de brasileiros, cerca de 116 milhões conviviam com alguma grau de insegurança alimentar, sendo que 43 milhões não tinham alimentos em quantidades suficientes e 19 milhões de brasileiros enfrentavam situação de fome. Isso representa 55,2% em situação de insegurança alimentar e 9% enfrentando a fome.
“A política de segurança alimentar no Brasil foi desmontada. Se isso tivesse sido mantida, hoje haveria condição para distribuição de alimentos como complemento ao auxílio emergencial no país todo”, comentou ao Brasil de Fato o líder do MTST, Guilherme Boulos. “Essa não é a preocupação do governo Bolsonaro e da maior parte dos governos locais no Brasil. É o movimento social fazendo o que o governo não faz”, disse.
No Espírito Santo não é diferente, considera Rosemberg Caitano, presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “A gente percebe pela própria situação nas ruas, pelos altos índices de desemprego. Foram montadas políticas erradas tanto no campo das políticas trabalhistas e de emprego, como nas políticas sociais e de combate à fome”, questiona. No âmbito estadual e dos municípios capixabas, ele tampouco observa atuações e esforços que consigam contrapor ou minimizar substancialmente a situação. “Vemos a sociedade civil salvando a própria sociedade civil diante da inércia dos governos. Ações como da Cozinha Solidária são muito bem-vindas. Mas é apenas paliativa. Os governos têm que pensar em um plano de contingenciamento, discutir com os órgãos, conselhos e fóruns da sociedade civil, respeitando a cultura alimentar do povo”.
Rosemberg indica que as pesquisas nacionais indicam que a fome no Brasil tem cor, gênero e grau de instrução. Atinge especialmente mulheres negras, semianalfabetas, subempregadas, chefes do lar, e seus dependentes. Para ele, é necessário que o governo do Estado impulsione com urgência uma pesquisa que possa identificar os locais, pessoas e perfis que são atingidos pela fome no Espírito Santo para poder ter um combate mais eficaz à questão. Mas não é preciso esperar os resultados das pesquisas para começar a agir. O presidente do Consea destaca que as ações da sociedade civil como doações de cestas básicas e cozinhas solidárias ajudam a amenizar a fome e também a visibilizar o tema e pressionar o poder público para que assuma seu papel, de elaborar um plano efetivo de combate a esta mazela que atinge muitos brasileiros.