Com destaque na luta pelos direitos humanos, Mãe Néia comemora 40 anos de atuação no Espírito Santo
Quem vai para o Bairro de Fátima, na Serra, mais precisamente para Nzo Musambu ria Kukuetu, ou simplesmente, Barracão de Mãe Néia, chega lá e se depara com plantas diversas. Enquanto aguarda, escuta o canto dos pássaros. Quando chega Mãe Neia, é a vez de ouvir as divindades. Essa acolhida acontece há exatos 40 anos, já que em fevereiro de 1982, Mãe Néia veio de Santos, em São Paulo, adotando o Espírito Santo como sua terra.
Aqui ela se tornou uma das referências no combate à intolerância religiosa e na defesa dos direitos humanos. “Nunca disse não para ninguém, mas quem faz as coisas é a divindade. Os guias nos dão intuição, caminho, conhecimento. Todo mundo tem santo, tem Deus presente, mas não é todo mundo que acredita na força divina. Eu acredito até hoje”, ressalta.
A mais nova empreitada de Mãe Néia no combate à intolerância religiosa e na defesa dos direitos humanos é a presidência do Centro Nacional de Africanidades e Resistência Afro-Brasileira no Espírito Santo (Cenarab-ES), lançado em outubro passado. Um dos objetivos do Centro, que já existe em 23 estados brasileiros, é fortalecer as comunidades tradicionais, impulsionando sua organização.
O Cenarab-ES conta com assessoria jurídica para orientar o povo de terreiro em relação a seus direitos, além de cobrar políticas públicas e, também, fortalecer candidaturas de representantes das religiões de matriz africana.
“A intolerância religiosa eu vivo não somente aqui no Espírito Santo, mas desde que me iniciei no Candomblé, pois é uma religião de negros. Nós somos tidos como malfeitores, Diabo, cada um dá um nome, mas isso não nos atinge. Ao contrário do que muitos dizem, respeitamos a natureza, sabemos que se a pessoa planta o mal ela colhe o mal, se planta o bem, colhe o bem. O mal está dentro de você, não é dentro do Candomblé, de uma casa de santo. Tem gente que diz que estou no caminho errado. Me prova que estou no caminho errado? Eu deito e durmo com minha consciência limpa”, diz.
Ao falar dos quilombolas, Mãe Néia brinca dizendo que acha que foi uma em outra encarnação. “Muitos desprezam os quilombolas, acho que já fui quilombola, pois tenho uma defesa por eles, por negros”, afirma a mãe de santo, que, por diversas vezes, já abriu as portas do Barracão para distribuir alimentos para os quilombolas quando eles precisavam estar na Grande Vitória para fazer mobilizações em defesa de suas terras.
Assim como eles já foram até a casa dela, Mãe Néia já foi até eles. Ela recorda quando, junto com outras mães e pais de santo, visitou o Sapê do Norte, formado pelos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, para participar de manifestações quando os dendezeiros, cujo cultivo mantém a tradição feminina de produção de um azeite utilizado, por exemplo, na preparação do acarajé, estavam sendo envenenados. “Tentam exterminar os quilombolas, suas tradições, mas isso nunca vai terminar. Vão pintar e bordar, mas não exterminam os quilombolas, o Candomblé. O Candomblé tem um poder, que é Deus que dá. A gente tem uma essência e essa essência nunca vai morrer”, acredita.
Trajetória no Candomblé
Sergipana, ainda na infância Mãe Néia foi para Santos em busca de tratamento, pois não se alimentava, caia, e muitos achavam que se tratava de epilepsia. Entretanto, por meio de um homem que viria se tornar seu pai de santo, descobriu que sua doença não era física, e sim espiritual, o que a fez se iniciar no Candomblé, fazendo com que os problemas de saúde cessassem.
“Ele está no mundo da verdade hoje, tem alguns anos que partiu para outro plano. Abaixo de Deus, foi ele que me deu minha saúde. Foi difícil, pois meus pais não aceitavam, eram católicos, mas passei a me dedicar totalmente ao Candomblé”, lembra Mãe Néia.
Prestes a fazer 77 anos, a maior parte de sua atuação religiosa no Candomblé foi no Espírito Santo. Assim que chegou, passou a cuidar das pessoas por meio de banhos e outros afazeres. “Ou eu assumia isso ou desencarnava, pois me curei através de um juramento perante a Deus, que como me cuidei, teria que cuidar dos outros. Assumi essa responsabilidade”, reforça.
Inicialmente, tudo era feito na própria residência de Mãe Néia, também em Bairro de Fátima. Porém, somente no final da década de 80, ela teve sua primeira filha de santo, quando viu sua história se repetir em uma moça de João Monlevade, Minas Gerais. “Em 1989, não tive escapatória, veio uma menina de João Monlevade, com problemas de saúde, assim como eu tinha, e também não era algo da medicina, era espiritual. Raspei a cabeça dela, fiquei um ano cuidando dela dentro de casa”, rememora.
Hoje, Mãe Néia tem 59 filhos de santo, mas o segundo foi somente sete anos depois da primeira. “Levei sete anos para pegar outra. Não é uma brincadeira, é sério. Sempre levei minhas coisas a sério, com respeito a mim mesma e com as pessoas que me procuram. Hoje não tenho vida própria, não tenho horário, me dou de coração. Não faço por fazer, levo com muito carinho, com muito amor”, afirma.
Por causa de sua doação, com o passar do tempo, a casa de Mãe Néia passou a ficar pequena. “Minha casa começou a sufocar, vinha muita gente, perdi a liberdade totalmente”, explica, destacando que, além do cuidado com as pessoas que as procuravam, ainda tinha dois filhos para criar. Então, há exatos 30 anos, em 1992, com recursos próprios, ela adquiriu o terreno onde construiu seu Barracão, que em sua trajetória abriu as portas para muitos movimentos sociais, inclusive, como espaço pra realização de reuniões.
Festa de Iemanjá
Com a inauguração do píer, em 1988, ela passou a fazer o festejo ali, mas em 1999, a mãe de santo, junto com a Federação Afrobrasileira do Espírito Santo, presidida na época por Nilton Dário, mobilizou as religiões de matriz africana para que também fizessem na praia, o que acontece até hoje. “Normalmente se fazia no ano novo, aí misturava religião com outras coisas, com bebida. Me sinto feliz, pois fiz um trabalho e tive resposta. Digo de cabeça erguida: eu fui corajosa. É uma vitória”, comemora.
Embora não tenha frequentado seu Barracão, ela lembra com carinho do ex-prefeito de Vitória Hermes Laranja, em cuja gestão foi inaugurado o píer de Iemanjá. “Ele tinha muita fé. A gente agradece e respeita muito ele”, diz. Outros políticos, ao contrário, já a visitaram, mas Mãe Néia prefere não dizer os nomes. Ela também destaca que já foi convidada para disputar uma vaga na Câmara da Serra, mas sempre recusou, por achar que não seria possível conciliar com as atividades de mãe de santo.
“É um reconhecimento do trabalho que a gente faz. Sou muito grata ao Espírito Santo. Não nasci aqui, mas tenho meu coração aqui. Agradeço aos capixabas por me receberem. Tenho respeito pelo Espírito Santo assim como o povo do Espírito Santo tem respeito por mim”, enfatiza a mãe de santo.