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‘O que estava depositado ali não era lajota nem cimento, eram sonhos’

Famílias despejadas em Itapemirim estão na rua, sem o acolhimento em ginásio prometido pela prefeitura

Reprodução

“O que eu mais perdi e o que as pessoas perderam foram os sonhos. O que foi depositado ali não foi lajota nem cimento, foram sonhos, de uma vida melhor, uma moradia digna”. A súplica vem de Nelma Rocha, a Loira, uma das lideranças da ocupação que foi despejada nessa terça-feira (22) na região de Maraguá, em Itapemirim, sul do Estado.

A ação atendeu a uma ordem judicial e contou com um grande efetivo da Polícia Militar, munido de cavalaria e armas de grosso calibre. A prefeitura, sob gestão de Doutor Antonio (PP) – eleito em junho passado, em eleição suplementar, após a cassação de Thiago Peçanha (Republicanos) por abuso de poder – informou sobre desvio do trânsito na ES-060 (Rodovia do Sol) por conta do despejo.

Afirmou também que as famílias retirada seriam cadastradas pela Secretaria de Assistência Social e Cidadania e as que não tivessem para onde ir seriam abrigadas temporariamente, no Ginásio Municipal Dinowalde Rodrigues Peçanha Jr, em Itaipava.

A realidade relatada pelas famílias, no entanto, é bem diferente: ginásio fechado e pessoas na rua com seus pertences. “As famílias foram largadas com seus pertences na porta do ginásio. Eu saí de dentro do acampamento à 1h [já na madrugada de quarta-feira, após o despejo]. A Marciane [Moté de Souza], secretária de Ação Social, apareceu, mas só fez promessas. Tivemos que pagar, sem poder, caminhão particular para tirar as coisas da rua, porque passava gente nos ameaçando. Hoje ainda tem coisa na frente do ginásio e famílias sentadas, sem ter para onde ir”, conta Loira.

Durante o despejo, ela estima que havia 300 policiais. “A polícia chegou truculentamente. Passaram por cima das plantações de todos. Não deixaram nem colher a horta. Quando tentei tirar, colocaram uma arma na minha cabeça, dizendo que eu estava descumprindo ordem judicial. Falei: ‘então me mata!’ e entrei na frente da máquina e consegui arrancar alguma coisa para as pessoas comerem”, relata. Muitos animais também morreram. “Um policial colocou 13 galinhas numa caixa, morreram todas. Muitos outros bichos morreram”.

Davi Abarca/Mandato Camila Valadão

Ela conta que, no momento da ação, cerca de 70 famílias estavam presentes, mas a ocupação tinha 136 no total. As demais estavam fora, trabalhando, ou em casas de parentes. As 70 que assistiram à destruição, afirma, são as que estão em situação mais vulnerável, pois não têm para onde ir, não têm renda.

“Ali tinha sonhos de morar dignamente, sonhos de pessoas necessitadas que não têm nem banheiro para fazer suas necessidades e que não tinham alimento. Pessoas que se ajudavam mutuamente. Alguém que tinha um arroz, dava um pouco para quem não tinha nada. Comíamos nossas verduras, nossas frutas que plantamos. Vivíamos como uma grande família, um ajudando o outro”.

Oito anos de resistência

Loira conta que a ocupação tem oito anos. As primeiras famílias que chegaram começaram os plantios e cuidados dos animais e foram acolhendo outras que se somavam. “A gente pegava bichos soltos nas ruas, cavalos, cachorros, galinhas, porcos…fomos pegando e cuidando. Também plantamos muito. Tínhamos mandioca, batata-doce, aipim, banana, horta comunitária!”.

Na pandemia, a ocupação se multiplicou, devido ao aumento do número de pessoas desempregadas e sem renda. “A gente tinha lotes de 300 metros quadrados, dividimos com os que chegaram, passaram a ser lotes de 150 metros quadrados”.

Durante a pandemia, houve a primeira ordem de despejo, mas por conta da proibição nacional de despejos durante a crise sanitária, a ação foi suspensa. Em julho passado, outra ordem, mas que não foi cumprida, conta, porque a Polícia estava sem efetivo suficiente.

A ação judicial, explica Loira, foi impetrada pela empresa Ouro Negro. “Procurei saber e vi que o terreno foi doado pela gestão do Dr. Luciano [Paiva, afastado por corrupção em 2015]. Eles tinham 60 meses para fazer o empreendimento, dizem que fariam um porto. Nas cláusulas do contrato tinham que cuidar da terra, colocar vigia, mas não fizeram nada”.

Especulação portuária

A empresa é responsável pelo projeto de terminal portuário Itaoca Offshore, voltado à indústria petrolífera. Dr. Antonio recebeu em se gabinete o diretor de Operações da empresa, Álvaro de Oliveira Júnior, para apresentação do projeto. O Itaoca Offshore é um dos mais de 15 projetos de portos previstos para o litoral capixaba, o que nitidamente demonstra uma especulação portuária predatória, como bem expôs a Campanha Nem Um Poço a Mais no artigo Espírito Santo: um porto a cada 15 km de litoral?“.

No dia da reunião, o empreendedor exaltou, segundo informou o site da prefeitura, que “vamos nos instalar em Itapemirim, não tenham dúvida disso”, seguido pelo prefeito: “o projeto é belíssimo, não vemos a hora de ver efetivamente aquele espaço se transformar em um canteiro de obras”.

Loira conta que quando as famílias chegaram na área, “a terra só tinha cactos e lixo, restos hospitalares, ossadas de boi, roubos, estupros, morte e tudo mais”. A resistência em permanecer no local, afirma, só se explica pela extrema necessidade.

“Ninguém vive num lugar daquele se não precisar muito. Sem banheiro, fazendo necessidade em baldes e enterrando…nunca a prefeitura, a secretária Marciane foi lá ver o que a gente precisava. Que direitos humanos foi esse que fizeram com aquelas pessoas? Família com pessoas com deficiência, com deficiência mental, autistas, cadeirantes, esperando cirurgia…chegam com máquina destruindo e largam na rua. Isso é direitos humanos?”.

Política habitacional e direitos humanos

A deputada estadual Camila Valadão (Psol) acompanhou a ação dessa terça-feira e afirmou que “as remoções e os despejos, sem dúvida, representam uma das violações de direitos mais dolorosas que acompanhamos como Comissão de Defesa dos Direitos Humanos aqui da Assembleia Legislativa”.

Afirmou que desde o fim da decisão cautelar que suspendeu os despejos durante a pandemia, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, ações de despejo têm aumentado e isso, sem a implementação de política habitacional adequada.

“É um absurdo decisões judiciais de remoção sem solução garantidora de direitos humanos por parte dos entes que deveriam trabalhar em cooperação. Seguiremos acompanhando a realocação dessas famílias a fim de garantir dignidade e o acesso às políticas sociais”.

A prefeitura foi procurada por Século Diário por email, pois todos os telefones disponíveis no site não funcionam. Perguntamos sobre quais medidas serão adotadas para alojamento das famílias despejadas. Havendo alguma resposta, esta matéria pode se atualizada.

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