Inquérito nacional revelou que 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer no Brasil, patamar equivalente à década de 1990
Uma pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgada nessa quarta-feira (8), mostra que 33,1 milhões de pessoas passam fome no Brasil, 14 milhões a mais que em 2020. Lideranças capixabas apontam a urgência de políticas públicas para reverter esse crescimento e criticam a falta de dados aprofundados sobre a insegurança alimentar no Espírito Santo.
“O Estado precisa fazer sua parte. Precisa investir nas políticas públicas, nas políticas de geração de emprego e renda, na distribuição de renda. Ou se faz isso, ou daqui a pouco toda a sociedade começa a pagar um preço muito caro pela falta da busca de solução. É urgente. Nós sabemos que as soluções não são rápidas, mas ou se debruça sobre isso ou começaremos a pagar as consequências desse abandono com as favelas e periferias, que são as mais vulneráveis”, declara o coordenador da Central Única das Favelas do Espírito Santo (Cufa-ES), Gabriel Costa.
Os dados são do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, que também revelou que mais da metade da população brasileira experimenta algum nível de insegurança alimentar. Ao todo, 125,2 milhões de pessoas estão nessa situação, um aumento de 7,2% desde 2020 e 60% quando comparado a 2018.
“A gente percebe esses dados a olho nu. Basta fazer uma visita ao Centro de Vitória, que é nítido o aumento da população em situação de rua, por exemplo. Quando fazemos monitoramento nas comunidades, nas periferias, a gente percebe”, aponta o presidente presidente do Conselho de Segurança Alimentar do Espírito Santo (Consea-ES), Rosemberg Moraes Caitano.
As 14 milhões de pessoas que entraram em um contexto de fome desde 2020 mostram o agravamento provocado pela pandemia da Covid-19. Para Gabriel, uma questão que já era preocupante, se tornou ainda pior com a crise sanitária.
“Nos últimos anos, acompanhamos o crescimento da fome no Brasil, do desemprego e dos preços dos itens básicos de sobrevivência e, quando chegou a pandemia, essa ferida se rompeu de vez. Nós começamos a ver pessoas que já não conseguiam garantir duas refeições ao dia, além da questão do acúmulo de dívidas, com aluguel, água e luz. Muitas pessoas tendo que voltar para casa dos seus pais, com toda sua família, buscando reduzir um pouco os custos”, relata.
Para o coordenador da Cufa-ES, a expectativa era de que em 2022 a situação fosse amenizada, principalmente após a vacinação, o que não ocorreu. Um exemplo é a busca por atendimento na Cufa-ES, que aumentou nos últimos meses, enquanto a arrecadação de alimentos despencou. De janeiro até agora, 20,3 mil famílias capixabas foram atendidas pelo projeto. “Houve um aparente esquecimento, como se tudo tivesse voltado ao normal. Só que o preço de tudo isso se reflete agora”, destaca.
Situação é pior para mulheres e pessoas negras
Os números do levantamento mostram que a fome chega mais forte nas casas lideradas por pessoas negras e por mulheres. Ao todo, 65% dos lares chefiados por pessoas pretas ou pardas convivem com a insegurança alimentar em algum nível. No caso das casas comandadas por mulheres, a fome passou de 11,2% para 19,3%, enquanto nas residências dos homens, a passou de 7,0% para 11,9%.
“A fome ainda é o espólio dessa falsa abolição. É nas periferias, nos guetos, que a população negra mora, que têm os menores salários, que os lares comandados por mulheres são os que mais se encontram em situação de vulnerabilidade”, destaca Rosemberg.
Gabriel lembra que a pessoa que está em situação de fome, além de lidar com a subnutrição, estando com o corpo vulnerável a outras doenças, também enfrenta problemas psicológicos. “Nós temos outro problema também, que é o moral e o emocional, porque a pessoa passa a se sentir humilhada, impotente, porque ela não garante nem o básico para si mesmo, nem pra sua família”, ressalta.
O relato também ficou evidente na pesquisa divulgada nessa quarta. No inquérito, 8,2% dos entrevistados relataram sensação de vergonha, tristeza ou constrangimento pelo uso de meios que ferem a dignidade para conseguir colocar comida na mesa.
Faltam dados no ES
Os dados nacionais refletem um cenário de preocupação que bate à porta de muitas famílias. O que o levantamento mostra é uma realidade de pelo menos 125,2 milhões sem ter certeza se vão conseguir se alimentar, 58,7% da população brasileira. “A gente lamenta que é a sociedade civil que ainda produz esses dados, não os órgãos governamentais. Ficam pensando políticas públicas sem ter esses dados na mão”, critica Rosemberg.
Ele afirma que, desde 2019, o Consea-ES tem solicitado ao Instituto Jones dos Santos Neves que faça um levantamento mais aprofundado sobre a insegurança alimentar no Espírito Santo, o que ainda não aconteceu. “A Câmara Técnica Intersetorial Estadual [Caisan – ES], que tem o papel de preparar o Plano Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, trabalha sem ter esses dados oficiais em mão”, afirma.
Para além dos dados, Rosemberg ressalta que a reversão do quadro atual passa pela implementação de políticas públicas. No Espírito Santo, o presidente do conselho cobra a criação de uma Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional. “Se é uma política de transversalidade, não pode ser feito por uma gerência, uma gerência não dá conta”, aponta.
O órgão citado por Rosemberg é a Gerência de Segurança Alimentar e Nutricional (GSAN), criada em 2012. A pasta é subordinada à Subsecretaria de Estado de Assistência e Desenvolvimento Social, dentro da Secretaria de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social (Setades).
Para Rosemberg, também é preciso regulamentar a política de segurança alimentar e equipamentos públicos como o banco de alimentos, a horta e a cozinha comunitárias e o banco de leite precisam ser retomados. “Essa realidade não está longe da gente, está cada dia mais próxima e, se a gente não souber trabalhar a política de segurança alimentar na intersetorialidade, essa fome vai triplicar”, alerta.