Roseane Oliveira, do Fordan, aponta burocracia e falta de acesso a serviços
A criação de secretarias municipais de mulheres, proposta pelo Governo Federal, é um passo necessário, mas também revela falhas estruturais da administração pública na garantia de direitos básicos. Essa é a avaliação da vice-presidente do Conselho Municipal de Mulheres de Vitória e pesquisadora do Fordan – Cultura no Enfrentamento às Violências, Roseane Oliveira, e da coordenadora jurídica do programa de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Layla Freitas. Ambas apontam desafios que comprometem a efetividade da iniciativa.
Roseane aponta que a existência dessas secretarias deveria garantir um fortalecimento real das políticas públicas, mas muitas delas se tornam extremamente burocráticas, afastando as mulheres dos serviços que deveriam ser acessíveis. “Temos uma Secretaria Estadual de Mulheres que não trabalha de forma eficaz. As secretarias municipais poderiam garantir esses direitos e aproximar a administração pública da sociedade, mas muitas vezes ficam distantes da população”, avalia.
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Layla reforça que a ausência dessas secretarias contribui para a vulnerabilidade das mulheres no Estado. “A proposta da criação das secretarias municipais é mais um demonstrativo da nossa falha enquanto sistema. Se já tivéssemos essas secretarias pensadas e criadas, não haveria necessidade de direcionar essa determinação”, pontua.
Esse direcionamento foi dado recentemente pelo Ministério das Mulheres, que lançou o Guia para Criação e Implementação de Secretarias de Políticas para as Mulheres, com o propósito de estimular gestores municipais a criarem estruturas administrativas que implantem políticas públicas voltadas para a equidade de gênero e a ampliação de seus direitos. As secretarias têm mais alcance administrativo e orçamento do que gerências, coordenações e diretorias, o que poderia fortalecer a implementação de medidas urgentes e essenciais.
As representantes do Fordan concordam que a destinação de recursos e as dificuldades de acesso à informação representam os principais entraves para a implementação e funcionamento da políticas públicas nos municípios. “Quando falamos de grupos em situação de vulnerabilidade, como mulheres, crianças, idosos e a comunidade LGBTQIA+, a administração pública destina menos recursos. Precisamos reverter essa lógica e garantir que esses grupos tenham prioridade”, observa Layla.
Roseane enfatiza que, apesar de diversas cidades possuírem coordenações e políticas específicas para mulheres, muitas vezes essas iniciativas não são divulgadas de maneira eficiente. “A população não sabe da existência dessas políticas e serviços. As mulheres em situação de vulnerabilidade, que deveriam ser o foco dessas políticas, muitas vezes desconhecem os serviços disponíveis ou não têm meios para acessá-los. O dever das secretarias também é aproximar a sociedade do município, principalmente pensando nos territórios dentro de cada cidade”, destaca.
Segundo ela, coletivos informais, institutos e organizações que já atuam nessas áreas poderiam ser parceiros estratégicos das secretarias,l para tornar as políticas mais eficazes e acessíveis.
Outro ponto crucial apontado pelas representantes do Fordan é a importância dos conselhos municipais como espaços de controle social e participação popular. Roseane destaca que a atuação desses colegiados é essencial para aproximar a sociedade civil do poder público, mas lamenta que nem todos os municípios tenham conselhos ativos. “A sociedade civil precisa estar presente na construção dessas políticas. Nos territórios onde conseguimos atuar em parceria com a administração pública, há um impacto direto na vida das mulheres”, ressalta.
Atualmente, poucos conselhos municipais da mulher estão ativos no Espírito Santo, sendo a maior dificuldade observada no interior do Estado. Além da dificuldade de criá-los, há um problema maior: a falta de ações da administração pública voltadas para as mulheres. Sem divulgação, proteção e repasse de verbas, essas mulheres ficam ainda mais vulneráveis”, alerta a pesquisadora.
Saúde e autonomia
A advogada do Fordan enumera dois aspectos fundamentais que devem ser considerados na atuação das secretarias municipais de mulheres: a saúde e a autonomia financeira. No primeiro ponto, ela enfatiza que a questão da saúde mental deve receber atenção especial. “O Espírito Santo está entre os estados que mais matam e violentam mulheres. Isso afeta diretamente o estado mental, psicológico e emocional dessas mulheres, que precisam de fortalecimento e acolhimento”, explica. No entanto, ela alerta para a escassez de profissionais da área. “Temos um número muito reduzido de psicólogas e assistentes sociais para atender essa demanda”.
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No campo da autonomia financeira, a geração de emprego e renda é vista como um fator essencial para romper ciclos de violência e dependência. “Muitas mulheres estão presas à dependência econômica do homem ou de programas governamentais. Quando profissionalizamos essas mulheres e as colocamos no mercado de trabalho, damos condições para que sustentem a si mesmas e seus filhos, fortalecendo sua autoestima e independência”, defende.
Ela acrescenta que a inexistência de secretarias municipais de mulheres na maioria dos municípios também compromete o suporte institucional, especialmente às mulheres vítimas de violência. “Temos muitas mulheres que precisam de acesso a serviços públicos, mas enfrentam uma enorme demora para conseguir acompanhamento psicológico e social. Em muitos municípios, simplesmente não há secretaria da mulher”, observa.
Layla cita o exemplo do município da Serra, que conta com uma Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres (Seppom), sob gestão de Lilian Mota Pereira, mas enfrenta limitações estruturais. “Serra é o município mais populoso do Estado, onde há o maior número de medidas protetivas, ou seja, um dos lugares onde mais ocorrem casos de violência contra mulheres, porém o número de psicólogos e assistentes sociais ainda é insuficiente”, analisa.
Outro desafio apontado pela especialista é a capacitação das equipes. “Não basta apenas oferecer atendimento psicológico ou social. Os profissionais devem estar preparados para acolher e fornecer apoio adequado às mulheres”, enfatiza.
Feminicídio no Estado
O Espírito Santo segue entre os estados com os mais altos índices de feminicídio do país. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, a taxa registrada supera os demais estados das regiões Sudeste, Nordeste e Sul. Entre 2022 e 2023, foram 35 casos por ano, número que subiu para 38 em 2024, segundo o Painel de Monitoramento da Violência Contra a Mulher da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp-ES). A vulnerabilidade das mulheres negras também se reflete nesses dados: das vítimas de feminicídio no último ano, 20 eram autodeclaradas pretas ou pardas, evidenciando desigualdades raciais no acesso à proteção.
O cenário de 2025 começou ainda mais preocupante. Apenas em janeiro, cinco mulheres foram assassinadas por parceiros ou ex-companheiros, superando os registros do mesmo período nos dois anos anteriores. Os crimes ocorreram em diferentes regiões do estado: Colatina, no noroeste; Itapemirim, no sul; Marechal Floriano, na região serrana; e Guarapari e Serra, na região metropolitana. Das vítimas, duas eram brancas, duas pardas e uma não teve a cor/raça informada. Os números de fevereiro ainda não foram consolidados pela Sesp.
Na análise das representantes do Fordan, a vulnerabilidade das mulheres no interior do Estado é agravada pela falta de informação e suporte. “Muitas mulheres sequer sabem onde ou a quem recorrer. E, em alguns casos, não há para onde ir. Isso as deixa completamente rendidas”, explica a coordenadora jurídica do programa. Ela também considera que o contexto social fora dos centros urbanos é mais conservador, o que dificulta não apenas o acesso aos serviços, mas também a disposição das mulheres para denunciar situações de violência.
Elas avaliam que a falta de secretarias municipais de mulheres compromete diretamente o suporte institucional às vítimas de violência. “Se tivermos uma secretaria específica, ela precisa ter orçamento próprio, dados estruturados e políticas de atendimento eficazes. Não basta criar um órgão se ele não tiver estrutura e recursos adequados”, pontua Roseane. Para a pesquisadora, a atuação dessas secretarias deve ir além do atendimento a vítimas de violência, garantindo também ações preventivas e estruturantes. “Precisamos pensar em capacitação, autonomia financeira e fortalecimento de mulheres antes que elas cheguem a uma situação de violência”, conclui.