Movimentos sociais realizam ato “Veta, Casagrande!” contra PL que criminaliza ocupações no Estado
Até que o Brasil alcance a garantia plena do direito constitucional – e humanitário – à moradia digna, no campo e na cidade, a todos os cidadãos, as lutas em defesa das ocupações populares serão legítimas e necessárias. Esse é o pressuposto comum aos movimentos sociais que realizam, nesta quarta-feira (8), às 9h, na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, o ato público “Veta, Casagrande”, que reivindica o veto do governador Renato Casagrande (PSB) ao Projeto de Lei nº 166/2023, aprovado na Assembleia Legislativa, apesar do parecer da Procuradoria da própria Casa de Lei sobre a inconstitucionalidade da matéria.
“Quando a Constituição Federal for respeitada e os direitos e garantias fundamentais forem cumpridos, não será mais necessário recorrer a ocupações”, sintetiza a advogada Isabella Cardoso, militante do Movimento Negro Unificado no Espírito Santo (MNU/ES), uma das organizações que apoiam o ato, que é capitaneado por famílias de diversas ocupações na Grande Vitória.
Também advogado e militante no Espírito Santo da campanha nacional Despejo Zero, Vinicius Lamego lembra que o governador tem até o dia 16 de maio para vetar o PL. “Ele pode sancionar expressamente ou vetar expressamente. Mas se ficar em silêncio, ocorre a sanção tácita”, explica.
Em caso de sanção, somente uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pode frear os efeitos que a eventual lei pode provocar na vida das famílias que lutam por um teto para viver. ADI que, explicam os dois advogados, tem farto material para justificar sua inconstitucionalidade.
Isabella classifica o PL como uma “aberração jurídica” e afirma que ele contraria a Constituição Federal em diversos pontos, “desde os princípios constitucionais até a restrições de acesso a direitos, benefícios e políticas públicas que somente podem ser restringidos e limitados mediante trânsito em julgado de ação judicial [contra os integrantes de ocupações]”.
No Espírito Santo, mais de 10 mil famílias estão ameaçadas de despejo, segundo levantamento da Campanha Despejo Zero, a maioria delas em prédios abandonados em áreas urbanas. No campo, são principalmente famílias em acampamentos vinculados ou não ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e em comunidades quilombolas ainda não regularizadas.
A campanha elencou, além do PL 166/23, de Lucas Polese (PL), outros quatro projetos de lei que tramitavam na Assembleia, com foco na criminalização das ocupações: PL 197/23, de Lucas Scaramussa (Podemos); PL 199/23, de Vandinho Leite (PSDB); PL 22/24, de Callegari (PL); e PL 28/24, também de Polese. A primeira proposta de Polese prevaleceu, por ser a mais antiga, com as demais em anexo, exceto a de Scaramussa, que solicitou a retirada de pauta.
De modo geral, explica Vinicius Lamego, o projeto aprovado visa impor às pessoas que realizam ocupações um tratamento de infratores da lei, além de impedi-las de ter acesso a políticas públicas diversas. “Quando ocorre um despejo, uma das principais medidas que o Estado deve prover, é colocar as pessoas em programas de benefícios sociais e habitacionais. A lei quer impedir qualquer tipo de assistência e fazer com que o poder público realize as remoções de forma sumária, sem as vias judiciais, criminalizando os ocupantes. Podem fazer condução coercitiva das famílias, apreender materiais delas, quebrar sigilo de dados, multar as pessoas, responsabilizar criminalmente e até proibir reuniões para tratar de ocupações”, expõe.
Campanha nacional
Em todo o Brasil, a Campanha Despejo Zero já mapeou o total de 309 mil famílias ameaçadas de despejo. Por sua vez, o Congresso Nacional já aprovou regime de urgência para um PL semelhante ao capixaba. Em outros estados projetos similares já viraram lei e foram alvo de ADIs.
A campanha explica que esses projetos “colocam o direito à propriedade privada como algo absoluto, ignorando por completo o princípio constitucional da função social da propriedade, uma vez que fomenta a realização de remoções compulsórias sem que seja oportunizada a análise do estado de abandono do imóvel e do tempo e consolidação da ocupação. Essa defesa da incondicional da propriedade é colocada como prioridade total em relação à vida e à dignidade humana de milhares de famílias”.
Esses projetos também afrontam as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acrescenta, citando a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 828. A ação, que havia suspendido as ações de reintegração de posse, no período da pandemia, determinou a sua retomada, mas, “a partir da realização de audiências de mediação e de conciliação para se buscar uma resolução mais adequada dos conflitos, com a participação do poder público e a busca pela inclusão dos ocupantes em benefícios e programas assistenciais e habitacionais que garantam minimamente a sua dignidade humana”.
Também o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é desrespeitado por esses PLs, prossegue a campanha, com base na Resolução nº 510/2023, que criou as Comissões de Soluções de Conflitos Fundiários em âmbito nacional e regional e traçou diretrizes para a realização de um cumprimento mais humanizado das medidas de remoção compulsória.
“Muito longe de ser um crime, a luta por moradia digna é necessária e legítima no contexto brasileiro”, afirma. “Diante da ausência de condições para comprar um imóvel regularizado e da insuficiência das políticas públicas habitacionais, grande parte da população brasileira se vê obrigada a ocupar um terreno para garantir um lugar para morar e a sua sobrevivência”, argumenta.
É também uma dinâmica que, historicamente, faz parte do desenvolvimento das cidades. “Em todas as cidades do país, bairros inteiros foram formados a partir de ocupações. A título de exemplo, de acordo com um dado apresentado pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), no ano de 1994, os loteamentos ilegais representavam 49,42% da área urbana do município de Vitória”.
Outro dado importante sobre a legitimidade ainda da luta por moradia no Espírito Santo, também trazido pelo IJSN, vem do CadÚnico de 2021, quando o déficit habitacional no Espírito Santo era de 102 mil famílias, acrescenta a campanha. “Esse total representa 20% do total de pessoas cadastradas no CadÚnico. Essas famílias que possuem gastos excessivos com aluguel, vivem em situação de coabitação ou em domicílios precários e improvisados também estão a um passo de terem que recorrer a ocupações para garantir a sua moradia”.