Relatório preliminar do governo federal que deve ser ser remetido às Nações Unidas aponta que o Brasil garante plenamente a participação social e democrática, desenvolve políticas que promovem igualdade racial e de gênero, respeito a todas as etnias, e investe no combate à LGBTfobia e à violência contra as mulheres. Mas, na prática, entidades da sociedade civil alegam o contrário. O que se tem visto, desde janeiro de 2019, com a posse do presidente Jair Bolsonaro e da ministra Damares Alves, é o desmonte de políticas conquistas ao longo dos anos pelos movimentos sociais.
Levantamento realizado por entidades da sociedade civil, que contesta o relatório, revela que atualmente há mais de 20 projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional visando alterar a atual Lei de Terrorismo, de 2016, com o intuito real de criminalizar ONGs e entidades. Destaca que o governo vem realizando uma devassa contra a participação de instituições em espaços de decisão: extinguiu todos os conselhos sociais e exonerou a coordenadora-geral do Conselho Nacional de Direitos Humanos, entre outras graves medidas, como desarticulação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNCPT).
As organizações apontam ainda a batalha anti-gênero travada pelo governo federal, usando a política externa como estratégia. O Brasil defendeu na ONU, por exemplo, a exclusão do termo “direitos sexuais e reprodutivos de mulheres”, ou seja, os direitos a se fazer uma opção sexual sem sofrer discriminação e de gerar ou não uma criança. Destaca também o crescimento da violência contra índios, o aumento de 150% nas invasões de terras indígenas em 2019, e o ataque do próprio presidente às comunidades tradicionais, declarando intenção de não apenas acabar com o processo de demarcação de terras como rever territórios já estabelecidos.
O documento apresentado à ONU – cuja versão preliminar foi divulgada em agosto – foi elaborado pelo Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, cuja titular é Damares Alves, atendendo a compromisso assumido com a ONU durante a 27ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em maio de 2017. Nesse período, o Estado brasileiro passou por uma sabatina realizada por representantes de todos os países que integram este órgão em um procedimento chamado Revisão Periódica Universal (RPU).
Para Gilmar Ferreira, integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos – Espírito Santo (MNDH-ES), o relatório da sociedade civil elaborado por entidades brasileiras com atuação destacada e com conhecimento profundo da realidade brasileira – como Conectas, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos, Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Justiça Global -, demonstra de forma irrefutável que o governo federal atua fortemente usando artifícios estarrecedores e articulados com as forças retrógradas para eliminar todas as conquistas da sociedade brasileira viabilizadas com sacrifícios ao longos das décadas desde a redemocratização.
“A atuação do governo é de supressão de instrumentos legais e também na aprovação de medidas pelo legislativo que retiram direitos, aumentam a repressão, eliminam conquistas institucionalizadas e, de forma prepotente, rebaixam e diminuem a importância dos marcos legais mais importantes de garantia de direitos e de reconhecimento internacional. Essa realidade vem sendo percebida desde o golpe de 2016. Espero que esse relatório consiga sensibilizar os organismos e a comunidade internacional para a gravidade que estamos vivendo no Brasil, com a ameaça concreta aos direitos humanos ao meio ambiente, aos serviços públicos e à democracia, demonstrado sobretudo pelas revelações trazidas pela 'Vaza Jato The Intercept”, explicou Gilmar.
O objetivo do programa da ONU é avaliar as políticas de direitos humanos das nações por meio de sabatinas realizadas a cada quatro anos e meio. Na metade deste tempo, os países podem voluntariamente publicar um relatório informando como está cumprindo das recomendações que receberam dos demais membros e que aceitaram atender. Segundo o informe preliminar do governo brasileiro, o País “executa totalmente as 242 recomendações aceitas em sua RPU”. No entanto, levantamento realizado pelas organizações da sociedade civil calcula, até o momento, apenas uma ante 163 itens avaliados.
“Eu gostaria de viver nesse ‘Brasil’ que é retratado no relatório do governo. O documento é desonesto e retrata uma realidade fantasiosa”, argumenta Camila Asano, coordenadora de programas da Conectas.
“Muitas das políticas públicas celebradas pelo relatório foram desmontadas ou estão sofrendo sérios ataques atualmente. Como exemplo, a nova Lei de Migração é apontada como um marco na proteção de migrantes, mas o relatório não dedica nenhuma linha ao grave retrocesso imposto nesse âmbito pela Portaria 666, do Ministério da Justiça, que prevê a deportação sumária de migrantes. É alarmante também que sequer uma linha do relatório preliminar seja dedicada à prestação de contas sobre as investigações acerca da execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes. Passados um ano e cinco meses de seu assassinato, ainda não há a responsabilização do(s) mandante(s) do crime”, analisa Camila.