Em Presidente Kennedy, grande porto se instalará no entorno de igreja que recebe uma das maiores romarias do Espírito Santo
A cada 5 de agosto comemora-se o dia de Nossa Senhora das Neves. Em Presidente Kennedy, extremo sul do litoral capixaba, uma multidão de até 50 mil pessoas costuma se mobilizar anualmente para agradecer e cumprir promessas em romaria até o Santuário das Neves, igreja construída em 1648 que é patrimônio cultural do Estado desde 2009. Depois das romarias de Nossa Senhora da Penha, a padroeira do Estado, é a maior mobilização religiosa que ocorre no Espírito Santo.
Por conta da pandemia do coronavírus, a celebração foi virtual no ano passado e em 2021 aconteceu de forma híbrida, com transmissão pela internet e entrada limitada na igreja. Neste formato, o número de participantes presenciais ainda foi muito reduzido este ano, porém, durante toda manhã, centenas de fiéis chegavam de carro, bicicleta, a cavalo ou a pé, vindos principalmente do sul capixaba e do norte do Rio de Janeiro, favorecidos pela proximidade da igreja de cerca de 10 quilômetros da divisa entre os estados, separados pelo rio Itabapoana.
As celebrações que costumam ocorrer no 5 de agosto foram resumidas a apenas uma missa, com início às 6h. Dada a lotação limitada, algumas dezenas de cadeiras foram colocadas do lado de fora para quem não pôde entrar. A missa local costuma ser bastante musical. Do lado de dentro, o canto conforta quem encontrou na religião um refúgio para a alma. Do lado de fora, o canto é dos pássaros, que ainda encontram na ampla restinga que rodeia o templo um refúgio de vida, alguns deles pousando no telhado antes de retomar o voo.
Não por acaso, a igreja foi erguida ali. Ela fazia parte da Fazenda Muribeca, construída por jesuítas, que ajudava a abastecer de alimentos outros locais de atuação dos religiosos, como o antigo Colégio São Tiago, hoje Palácio Anchieta, atual sede do governo do Espírito Santo, no Centro de Vitória.
Além da localização entre Reritiba (hoje Anchieta), uma das maiores aldeias jesuíticas do Espírito Santo, e São Pedro do Cabo Frio, também importante centro do norte fluminense, a região era estratégica por ser de difícil acesso, cercada por rios, lagoas e tabuleiros, o que permitia maior proteção contra ataques de indígenas, além de possuir recursos naturais favoráveis para obtenção de madeira e criação de gado.
Segundo Carlos Roberto Pires, antropólogo, arqueólogo e professor do Instituto Federal do Estado (Ifes), podem ter morado na Fazenda Muribeca cerca de mil pessoas, antes do local entrar em decadência após a expulsão dos jesuítas do Brasil no século XVIII. No vídeo Entre lendas e tesouros, os restos da Fazenda Muribeca: um estudo de caso em Arqueologia Histórica, o professor conta um pouco sobre a história do local e os indícios arqueológicos ainda remanescentes, como de construções antigas e sambaquis feitos com conchas do mar deixados por povos ancestrais.
O empreendimento, que ocupará cerca de 2 mil hectares, ainda terá uma área de quase 7 mil hectares para implantação de um distrito industrial. O projeto de construção do Porto Central é desenvolvido pela TPK Logística, empresa criada em 2011 por empresários capixabas, tendo apoio da Van Oord e do Porto de Rotterdam, ambos da Holanda. A Igreja de Nossa Senhora da Neves, hoje isolada, ficaria praticamente cercada por empreendimentos industriais e portuários.
Os impactos da construção do porto foi tema inclusive da missa celebrada por Dom Luiz Fernando Lisboa, bispo de Cachoeiro de Itapemirim. Na parte final (veja no vídeo a partir de 1h15), ele convidou Cora Augusta Duarte Aguieiras, arquiteta que integra a Comissão de Bens Culturais da Diocese, para falar sobre as questões ainda em diálogo entre a igreja e os empreendedores.
“Hoje estamos passando por essa situação de estarmos enclausurados em uma área pertencente ao Porto Central. E vem a implantação de um projeto extremamente impactante não só para o patrimônio histórico como para o patrimônio natural. Então a preocupação é muito grande em relação à salvaguarda”, disse Cora à reportagem.
Entre as necessidades apontadas por ela para proteção do local, está a realização de uma macrodrenagem extremamente eficiente para evitar inundações, já que as obras elevarão partes do terreno acima do nível da igreja, em área alagadiça nas cheias do Rio Itabapoana, onde os jesuítas inclusive construíram diversos canais para evitar os alagamentos. Também pede uma ampla área não edificada e um cinturão verde no entorno da região, para proteger o local o máximo possível dos empreendimentos. A própria estrada por onde chegam os romeiros deve ser eliminada e substituída por outro acesso.
O dia de Nossa Senhora das Neves também marcou uma visita de vistoria de equipe do Conselho Estadual de Cultura (CEC) ao local, que percorreu o entorno e pediu esclarecimentos a representantes do empreendimento.
A Campanha Nem Um Poço a Mais questiona os impactos que os grandes projetos portuários costumam causar, como a destruição ambiental das praias e da vida marinha e para o turismo; inviabilização das pesca artesanal, afetando o modo tradicional de vida de famílias e comunidades; sobrecarga nos serviços públicos municipais; aumento da violência, prostituição e gravidez precoce por conta da vinda de milhares de trabalhadores para as obras; e promessas de emprego que não atendem à população local, geralmente relegada a trabalhos precários.
No caso específico do Porto Central, o manifesto distribuído durante o ato alertava para impactos como a ameaça de deixar a igreja praticamente ilhada em relação aos empreendimentos e afetar o acesso ao santuário durante as romarias. Também cita que 400 pescadores do município podem fica impossibilitados de exercer seu ofício tradicional, a fauna e a flora da área de 1.100 hectares de restinga e Mata Atlântica que seriam destruídos, assim como áreas alagadas, que poderiam ocasionar problemas nas cheias do rio Itabapoana.
A nota ainda questiona que o porto deve receber isenção de impostos federais, estaduais e municipais para se instalar, gerando assim pouca riqueza para os cofres públicos.
A Campanha encaminhou nessa sexta-feira (6) uma carta direcionada ao representante do consulado da Holanda no Espírito Santo e a entidades da sociedade civil daquele país, alertando sobre os impactos que podem ser provocados pelo Porto Central com auspício do governo holandês, que é proprietário do Porto de Rotterdam, sócio do empreendimento em Presidente Kennedy.