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‘Sou aquela mãe que ninguém vê, ninguém nota. Socorro! Empatia!’

Coletivo cobra implementação de plano de ação para cuidado de ‘mães atípicas’ criado na Serra, pioneiro no Brasil

“Quem sou eu?

Sou aquela mãe que ninguém vê!

Ninguém liga, ninguém abraça …

Uma simples ligação

Ou mensagem no whatsapp

Oi, tudo bem com você?

Oi posso te dar um abraço?

Não estou aí, mais torço por você!!!!!!

E seu filho está bem?

Não se culpe, você e incrível!!!!!!

Calma, respira……vai ficar tudo bem!

Você dormiu? Comeu?

Não chore, não se culpe!

Você faz o seu melhor

Sim, eu sei! Sinto!!!!

Sua frustração

Sua preocupação!

Calma, respira!!! Você é uma, mas consegue se transformar em mil!! Calma, eu sei ….sei que você queria dormir, queria sentar e descansar, comer

Sem essa preocupação, sei !!! Sim, que você apenas queria poder toma um banho, se maquiar, se sentir linda!

Você é!

Tenha certeza disso!!! Quem sou eu???!!

Sou aquela mãe que ninguém vê

Ninguém ouve!!!!!!

Ninguém nota!!!

Socorro!

Ajuda!

Empatia!!!

Essa sou eu!!!

Bem-vindo ao meu mundo!!!

Mãe atípica!”

Os versos são de Adriana Casteluber, mãe do Gabriel, de 14 anos – autista nível 3 – moradora na Serra, na Grande Vitória, e integrante do Coletivo Mães Eficientes Somos Nós (MESN). Sua poesia é um grito que ecoa o drama de milhares de “mães atípicas” das periferias das cidades, relegadas a uma invisibilidade brutal durante toda a sua existência, o que é fonte permanente de problemas de saúde física, emocional e mental.

Adriana Casteluber e o então bebê Gabriel. Foto: Redes Sociais

Sem condições financeiras para consultas e exames na rede privada, mães e filhos atípicos contam exclusivamente com a saturada rede pública e, principalmente as mães, acabam sem conseguir realizar os cuidados médicos básicos durante anos, como preventivos e check ups de clínica geral, e, em caso de necessidades mais específicas, como de saúde mental, acabam até desistindo de tentar, tamanhas as dificuldades que se acumulam: falta de dinheiro para a rede privada, falta de vagas na rede pública, negativa dos consultórios e postos de saúde em lidar com as crianças e adolescentes com deficiência enquanto a mãe tenta fazer a consulta ou o exame que, finalmente garantiu a vaga e conseguiu se deslocar até o local agendado.

“A maioria das mães passa por isso! A nossa vida de mãe cuidadora é muito desgastante. A gente até para tomar um banho é uma dificuldade, para fazer os serviços domésticos, para cuidar da saúde! Deveríamos realmente ter uma rede de apoio e de suporte que infelizmente não temos”, descreve.

“No meu caso, eu aperto e tiro da onde não tem dinheiro para pagar uma consulta com a ginecologista. Essa doutora é ótima, ela me atende, conhece meu filho e acima de tudo tem um pouco de empatia, pois eu marco a consulta e preventivo, levo meu filho junto na realização do exame e a gente tranca a porta, porque tenho medo dele fugir”, relata.

“Eu penso que o SUS [Sistema Único de Saúde] tinha que fornecer um tipo de atendimento em que nós mães atípicas pudéssemos ter consulta, exames ginecológicos e mamografia. Um preventivo coletivo ou mamografia coletiva, por exemplo, onde nesse dia as mães atípicas poderiam fazer seus exames enquanto um profissional capacitado ficaria com nossos filhos!”, sugere.

Um serviço, ressalta, que seja humanizado e de fato adaptado às especificidades das mães atípicas, algo que ela já tentou algumas vezes, sem sucesso. “Peço um atendimento digno e respeitoso, porque uma vez eu tive que brigar, chamar a gerente do posto, porque estavam tratando meu filho e a mim igual cachorros, falei que ia filmar, chamar a polícia e fazer boletim de ocorrência. Tratar nossos filhos e nós mães com respeito e educação é o mínimo!”, reivindica.

Gabriel tem diagnóstico de autismo nível 3 e tem os mesmos direitos a saúde, educação e lazer que as crianças típicas. Foto: Arquivo Pessoal

“Acho que faltam também cuidados na saúde mental tanto para nossos filhos PCDs, quanto para nós mães. Sugiro um projeto como se fosse uma casa de atendimento voltado às mães e aos nossos filhos, onde teríamos atendimento psicológico e aos nossos filhos também, nem que fosse uma terapia ou uma recreação para eles. Aí teríamos a possibilidade de fazer pelo menos um atendimento, não dependeríamos de pagar ninguém ou pedir favores, o que é quase impossível”, prossegue.

“Uma outra ideia, que eu como mãe acredito que seria ótimo, é uma casa de mães, esse projeto dividido em núcleos, onde também poderíamos ter atendimento psicológico, oficinas de artesanato, corte e costura, enfim, oficinas e cursos para as mães que queiram aprender algo para trabalhar, enquanto seus filhos estão em terapia ou recreação ou uma musicoterapia, que seria na minha opinião um ótimo atendimento para eles. Seria uma ótima oportunidade para nós mães, principalmente as que não podem trabalhar fora e têm muito gasto com os filhos com farmácia, fralda, alimentação etc., podermos aprender, produzir e vender nossos produtos”.

Construção coletiva

Sonhos como esses descritos por Adriana povoam as mentes e os corações das integrantes do Mães Eficientes há anos. Muitos deles já foram expostos e discutidos durante as inúmeras reuniões que o Coletivo realiza com a gestão de Sergio Vidigal (PDT) desde setembro de 2021, quando concluíram um acampamento de 32 dias feito na Prefeitura da Serra , em que reivindicavam uma reunião com o prefeito para expor necessidades urgentes, principalmente na educação especial da rede municipal.

Com a formação de um Grupo de Trabalho para discutir políticas e prazos, a pauta foi agregando também questões de saúde das crianças e adolescentes, até chegar nas políticas públicas para as mães. Passados sete meses, o Coletivo conseguiu que a prefeitura criasse um outro grupo de trabalho, para elaborar um Plano de Ação “visando atender cuidadoras(es) e familiares de pessoas com deficiência no âmbito do município da Serra” , sob coordenação da secretária de Direitos Humanos e Cidadania (Sedir), Lilian Mota Pereira.

Um ano depois, em abril de 2023, o Plano foi publicado, uma iniciativa inédita no país, avalia o Coletivo MESN, tendo como primeira ação implementada, a entrega de uma carteirinha que garante prioridade para mães de filhos atípicos no atendimento em órgãos públicos e espaços privados, como lojas, bancos, postos de saúde e repartições públicas.

Publicação do Plano de Ação para cuidadoras de PCDs da Serra. Foto: Leandro Pereira/Secom Serra

A carteirinha tem funcionado bem, avalia a coordenadora-geral do Mães Eficientes, Lucia Mara Martins. Mas todas as demais ações previstas no Plano não tiveram avanço, passado quase um ano de sua publicação. “O acompanhamento psicológico não aconteceu, o atendimento humanizado nas unidades de saúde não aconteceu, os cursos de formação para mulheres que sofrem violência não atende às mães atípicas não aconteceu”, lamenta.

Reforçando as sugestões de Adriana, Lucia resume: “Tem que cuidar da mãe e do filho, ter um espaço de acolhimento para a mãe levar o filho e serem acolhidas no serviço. Poder chegar na unidade de saúde e não ter que voltar para casa sem marcar a consulta, porque a atendente diz que só pode agendar pelo site. A mãe atípica tem que ser olhada de uma forma diferente, se não ela não consegue se cuidar e morre, de depressão, de câncer, de suicídio”.

Doenças graves e suicídio são questões muito delicadas que precisam ser enfrentadas com coragem e amorosidade, afirma Lucia, ainda sob o impacto da tragédia que foi a perda de Débora Lima, integrante do Coletivo de 40 anos, mãe de três crianças autistas. “Ela sofreu um infarto e o seu cérebro ficou muito tempo sem oxigênio. Ela também sofria de depressão, que é uma realidade da maioria das nossas. Muitas vezes a sobrecarga de cuidados é tanta que chegamos à exaustão. Muitíssimas de nós muitas das vezes não temos tempo nem de sorrir, pois nem nos sobra tempo para olhar no olhar do outro. Muitas vezes a deficiência de nossos filhos é usada para nos criminalizar, nos julgar, nos intimidar e nos torturar. A sociedade nos abandona, o poder público nos abandona, resta a nós o adoecimento mental, a morte social e por último a morte física”, registrou, na época, o Coletivo, em suas redes sociais, onde também se solidarizou com uma mãe atípica de 63 anos, mãe de um jovem autista de 27 anos, que matou o filho e a si mesmo com uma arma, dentro de casa,  em Águas Claras, no Distrito Federal.

Nos meses de férias, contextualiza, novos desafios se impõem, já que as opções de lazer gratuito para mães atípicas periféricas são muito escassas. No caso da Serra, município onde a maioria dos integrantes do Coletivo reside, Lucia dá o exemplo de um dos principais pontos de recreação ao ar livre mantidos pela prefeitura. “O Parque da Cidade é lindo, lotado de gente. Mas as nossas não podem ir, porque o parque virou comércio. Uma mãe que mora na periferia com cinco crianças não consegue comprar cinco balões de vinte reais cada um. E as crianças com deficiência não entendem, se desorganizam e surtam, mesmo. Se para qualquer criança de periferia é difícil, imagina para as atípicas. E as mães ficam ainda mais desesperadas com essa situação. Uma mãe de classe média, quando está exausta, paga alguém para ficar duas horas com seu filho ou mais, até ela se restabelecer. A mulher de periferia não tem como pagar uma cuidadora”, descreve.

Demandas, sonhos, projetos e reivindicações diversas como essas serão pauta da reunião que o Coletivo tem agendada com o prefeito na próxima segunda-feira (22), às 14h. “Foi importantíssimo a Serra sair na frente nessa discussão dos cuidado com as mães cuidadoras de PCDs. O plano de ação e a carteirinha de prioridade no atendimento são ações pioneiras no país. Mas as ações precisam ser implementadas”, sentencia.

“Chega de sermos invisibilizadas, criminalizadas, intimidadas pela sociedade, pelo poder público, pelas nossas próprias famílias. Tem que haver formação dos servidores, políticas públicas integradas, campanhas de conscientização”, roga. O prefeito, salienta, continua disponível para dialogar e construir.

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