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‘Voltamos à época em que se comia açúcar com trigo. São vários passos para trás’

Com o aumento da miséria, Pastoral da Criança observa mais casos de desnutrição infantil

O aumento da miséria, em decorrência da pandemia de Covid-19, fez com que a luta contra a desnutrição infantil voltasse a entrar com força na pauta da Pastoral da Criança. “Retornamos à época em que se comia açúcar com trigo, como víamos antigamente. Demos vários passos para trás”, diz a coordenadora da Pastoral na Arquidiocese de Vitória, Andressa Zelande da Silva.

Foto: Divulgação

Criada em 1983, no Paraná, a Pastoral da Criança se espalhou pelo país, extrapolou fronteiras, e hoje se encontra em outros 11 países da América Latina. Tornou-se referência no combate à desnutrição infantil, uma de suas metas. Na Arquidiocese de Vitória, cerca de 60 das 91 paróquias contam com a atuação da Pastoral da Criança. Em todas elas, um movimento semelhante é observado.

“Com a saída do Brasil do Mapa da Fome, notamos a questão do sobrepeso e trabalhamos isso. Os pais davam refrigerante para elas [as crianças] desde cedo, além de alimentos mais rápidos de serem feitos, mais fáceis de se preparar, como Miojo”, diz, destacando que, se antes as famílias não tinham o que dar de comer para os pequenos, nessa fase podiam até mesmo consumir alimentos considerados supérfluos.
Andressa declara que hoje seu sentimento é de “uma viagem ao passado”. “Retrocedemos. A realidade de hoje me lembra muito a época em que ingressei na Pastoral, há 28 anos. Visitávamos casas em que as famílias só tinham açúcar para comer, não tinham fogão, não tinham gás, cozinhavam feijão puro na latinha para poder se alimentar”, recorda.

Andressa afirma que o número de famílias que solicita a ajuda da Pastoral para obter doação de comida aumentou. Uma das formas de auxiliá-las é por meio da Campanha Paz e Pão, da Arquidiocese de Vitória, lançada em abril de 2021, durante a Festa da Penha. De cunho permanente, é possível se cadastrar como doador no site da ação solidária, contribuindo por um ano com uma quantia fixa para auxiliar na compra de alimentos para famílias em vulnerabilidade social. Entretanto, a demanda por alimento é grande, não sendo possível atende-la por completo por meio da campanha.

Razões

Além da pandemia da Covid-19, também contribui para essa situação de maior vulnerabilidade social o fim de políticas públicas, como o Bolsa Família. Contudo, antes disso o número de pessoas em situação de insegurança alimentar no Espírito Santo já era grande, o que pode ter se agravado mais ainda com a crise sanitária.
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 425 mil domicílios capixabas estão em situação de insegurança alimentar, totalizando 1,3 milhão de moradores. O estudo não levou em consideração pessoas em situação de rua. Desses lares, 21,1%, ou seja, 926 mil moradores, estão em insegurança alimentar leve; 6,2%, portanto, 260 mil, em insegurança alimentar moderada; e 3,4% em , um total de 134 mil, em situação grave. 
Insegurança alimentar leve é quando há preocupação com a possibilidade de não se ter acesso aos alimentos no futuro. Na moderada, há redução da quantidade de alimentos consumidos entre os adultos, já na grave, a escassez de alimentos atinge todas pessoas da casa.
Outra motivação para o retorno da desnutrição infantil e que teve origem na pandemia da Covid-19, segundo Andressa, foi a impossibilidade de as crianças acessarem a merenda escolar em virtude do cancelamento das aulas presenciais em prevenção à Covid-19.
Divulgação/Agência Brasil

Embora as gestões estadual e municipais tenham enviado para as famílias uma cesta básica para que os estudantes pudessem ter acesso à comida, essa política, destaca Andressa, começou a ser operada de forma tardia. O secretário geral da Associação de Pais de Alunos do Espírito Santo (Assopaes), Aguiberto Lima, concorda com a afirmação.

Aguiberto recorda que as aulas presenciais foram canceladas em abril de 2020, passando a ser no formato híbrido a partir de setembro. No intervalo entre esses dois meses, afirma, as famílias não receberam as cestas, sendo que somente alguns municípios destinaram os alimentos aos estudantes antes disso, por volta de junho.

Quando as famílias passaram a receber, isso foi feito de forma restrita. “Existe uma rubrica do FNDE [Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação] para segurança alimentar. As cestas eram para ter sido entregues às famílias desde o início. É um recurso per capita, todo e qualquer aluno matriculado tem direito, mas cada governo fez o que quis. Vitória, por exemplo, se baseou no Cad-Único e teve município que levou em consideração o Bolsa Família, o que é ainda mais restrito”, diz.

Histórico

A Pastoral da Criança é um Organismo de Ação Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fazendo parte da Comissão Episcopal Ação Sociotransformadora. Acompanha gestantes, dando orientações sobre alimentação adequada para uma gravidez segura e supervisionando se a criança está se desenvolvendo com o peso ideal de acordo com cada período de gestação. Também acompanha crianças de zero a seis anos, que, mensalmente, participam de pesagens para que se verifique seu desenvolvimento.

Assim, assume a tarefa de orientar e acompanhar as famílias em ações básicas de saúde, educação, nutrição e cidadania, combatendo a insegurança alimentar, trabalho este feito por voluntários, denominados de líderes. A Pastoral, no início de sua atuação, utilizou muito a multimistura no combate à desnutrição infantil, composta por ingredientes como farelo de arroz e trigo, folha de mandioca e sementes de abóbora e gergelim.

Ações

Andressa relata que hoje não se usa muito a multimistura. Além da pesagem mensal, há ações de orientação sobre como preparar hortas no quintal de casa, além de cursos de culinária com produtos naturais. Entre as receitas estão as de sucos feitos com legumes e verduras e uma torta por meio da qual é possível aproveitar talos como os da alface e couve, “coisas que a gente costuma jogar fora”, destaca Andressa, que explica que, normalmente, os pratos são baseados em produtos da região, como forma de valorizar a cultura gastronômica local.

Foto: Emater/MG

A coordenadora da Pastoral na Arquidiocese de Vitória destaca que, atualmente, o grupo conta principalmente com líderes que atuam nela há muitos anos, necessitando de mais jovens. “Precisamos de renovação, de pessoas de bom coração e boa vontade para assumir a responsabilidade de estar nesse trabalho de ajudar as famílias a sair da situação de fome, mas sem deixar de cobrar o poder público para que ele faça o papel dele”, diz.

Andressa afirma que os líderes da Pastoral “veem realidades que muita gente não enxerga, entram em locais que o poder público não entra, tendo às vezes, que pedir autorização do tráfico”.

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