A pandemia de Covid-19 é um momento propício para a população questionar em que o governo está investindo o dinheiro do superávit das contas, que desde 2012 recebem nota A do Tesouro Nacional. A sugestão é do presidente do Conselho Estadual de Economia (Corecon-ES) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Celso Bissoli Sessa.
“Ostentar nota A é importante, mostra gestão eficiente, mas a população precisa receber os resultados disso”, afirma. “O governo ganha com os rendimentos de uma parte dos recursos dos fundos superavitários, mas será que todo esse dinheiro parado não deveria ser aplicado para bem estar direto da população?”, questiona, lembrando que, segundo dados de 2019 do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), 14% da população capixaba têm renda mensal inferior a R$ 425,22 (pobreza) e 23% vivem com menos R$ 146,90 por mês (extrema pobreza) – situação que tende a piorar com o prolongamento da pandemia, devido a medidas de isolamento social mal conduzidas.
O quadro é o seguinte, descreve o presidente do Corecon: por um lado, a fragilidade socioeconômica prolongada de mais de um terço da população sendo agravada com uma crise sanitária mundial; por outro, uma situação financeira privilegiada no cenário nacional e a drenagem de bilhões de reais todos os anos em sonegação fiscal e benefícios tributários a grandes empresas já estabelecidas.
“O que acontece hoje é a transferência de renda para os grandes grupos empresariais que historicamente têm trânsito bom nos governos e mantêm os privilégios”, afirma. “É preciso saber se esses incentivos ainda estão funcionando com política industrial, política de desenvolvimento. Se chegarmos à conclusão que não geram mais os benéficos, significa que os recursos não precisam mais ser destinados pra isso e podem ser usados para outras ações, como transferência de renda”, explica. “A vantagem da transferência de renda para essa população é que o dinheiro circula regionalmente”, ressalta.
Estudos nacionais indicam que “45% do que é investido em programas de transferência de renda voltam para o governo em impostos”, conta Celso. O motivo é que as famílias de baixa renda possuem “alta propensão ao consumo”, fazendo o dinheiro circular regionalmente, no comércio da cidade, ao invés do mercado financeiro.
Ele e outros pesquisadores da Ufes e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes) têm feito simulações para saber se esse percentual se confirma também no Espírito Santo. “É uma forma de mostrar que são programas com um custo menos elevado que se pensa, e com resultados para a economia muito melhores do que se imagina”, diz.
No Espírito Santo, neste momento de pandemia, os pesquisadores acreditam ser possível iniciar um programa de renda mínima seletiva, voltada aos 14% da população em extrema pobreza. Sendo possível ampliar, vai-se beneficiando outros grupos, “estabelecendo critérios para filtrar quem receberia no primeiro momento”.
“Existe um efeito de longo prazo para esse tipo de política que é a redução das desigualdades sociais. Isso aumenta muito o desempenho do governo, da economia, futuramente se reverte numa inserção melhor no mercado de trabalho. Mas o efeito é de longo prazo, geralmente supera o período de um mandato político”, pontua, vendo nessa uma possibilidade de explicação para a resistência dos governos em adotar a transferência de renda aos mais pobres.
Política industrial
Mas uma razão é incontestável, e provavelmente a maior: a influência política dos grandes empresários que, por meio de isenções e incentivos fiscais, drenam os recursos públicos que poderiam ser aplicados para benefício dos mais pobres. “Isenções fiscais são uma grande caixa-preta, um tabu no Espírito Santo há décadas. Os governos sempre tiveram muita dificuldade em estudar quais os efeitos dessas isenções”, contextualiza.
A legislação que regula a concessão de incentivos fiscais está estabelecida com objetivo de desenvolver economia e o parque industrial através da atração de novas empresas, mas a análise sobre a efetividade dessas políticas não é feita. “Só o fato de haver a resistência em investigar levanta uma suspeita”, ressalta Celso Bissoli.
“Esse tipo de estudo precisa ser feito. Precisamos saber se esses incentivos ainda estão funcionando com política industrial, política de desenvolvimento. Se chegar à conclusão que não geram mais os benéficos, significa que os recursos não precisam mais ser destinados pra isso e podem ser usadas para outras ações, como transferência de renda”, reafirma.
Enquanto o dinheiro transferido aos mais pobres circula dentro do município e do Estado, fortalecendo a rede de comércios e serviços locais, o dinheiro transferido para os mais ricos, por meio das isenções fiscais, tem, aparentemente, repercussões positivas muito menores na economia regional.
“Essas empresas geram alguns empregos, movimentam alguma coisa da economia local, mas há um vazamento de renda muto grande”, esclarece. Uma grande empresa importadora, por exemplo, que se instala devido aos incentivos fiscais, só usa o Estado com porta de entrada, pois pega os produtos e despacha pra outros estados. “No máximo o que gera aqui são alguns empregos, mas é muito pouco em relação ao tamanho do empreendimento”, pontua. “Não está na hora desses incentivos diminuírem? Essas grandes empresas não podem caminhar sozinhas? Essa elite, o padrão de consumo dela não faz parte da nossa realidade”, desnuda.
Eficiência e transparência
“Um dos princípios da administração pública é a eficiência no uso do recurso público. Se os estudos começarem a mostrar que os incentivos não geram os resultados esperados, implica em mudar essas políticas”, aduz.
Os estudos de análise comparativa, relata Bissoli, mostram que a transferência de renda tem impactos positivos muito maiores. “Quando se faz esse tipo de estudo, não se analisa somente se o incentivo fiscal está gerando efeito prometido ou não. Compara-se também com cenários alternativos: se esses mesmos recursos fossem destinados a outros programas, como transferência de renda, não geraria mais efeitos?”.
No Espírito Santo, a dificuldade em fazer um estudo de análise comparativa está na falta de transparência dos dados. “Até pouco tempo atrás, os valores sequer eram divulgados. Agora é obrigatório que conste na lei orçamentária do governo, mas a divulgação é feita de forma muito agregada, sem mostrar quais valores vão para quais empresas”, critica. As poucas análises sobre geração de renda e emprego disponíveis “são muito frágeis”, observa, com “dados muito agregados e comparações muito simplistas entre uma coisa e outra pra concluir que o impacto é positivo”.
Os incentivos fiscais começaram no Espírito Santo no final da década de 1960, para atrair empresas de importação, porque até então só havia basicamente exportação. O Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap) foi a principal ferramenta dessa fase – 1970 a 2013 – desenvolvendo o setor de comercio exterior, por meio das chamadas “empresas fundapeanas”, sendo o Grupo Coimex um ícone do setor.
Nos anos 2000, o Fundap passou a atuar também no setor atacadista, atraindo centros de distribuição. Atualmente, conta Bissoli, “o substituto do Fundap continua dando vários incentivos para empresas um pouco invisíveis aos olhos da população, do setor atacadistas e de importação e exportação, mas que, talvez, já possam caminhar com as próprias pernas”, pondera.