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Nildo Ouriques: ‘Não é um ajuste fiscal, é um assalto ao Estado’

Professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Nildo Ouriques está em Vitória participando de uma série de atividades acadêmicas e de movimentos sociais. A última delas acontece neste sábado (2), das 14h às 19h, no Sindicato dos Bancários do Estado (Sindibancários), Centro de Vitória, como parte do “Ciclo Nacional de Formação pela Revolução Brasileira: Dependência, Subdesenvolvimento e a Revolução Brasileira”, com participação gratuita sem necessidade de inscrição prévia.

Membro do Diretório Nacional do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), Nildo é um crítico ferrenho tanto da direita liberal como da esquerda moderada, usando o termo “petucanismo” para se referir às semelhanças que identifica entre ambos.

Na entrevista ao Século Diário, o professor falou sobre o primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro (PSL) e criticou as políticas de ajuste fiscal, sobre as quais a grande mídia e outros poderes apontam o Espírito Santo como modelo.

Como você avalia o governo Bolsonaro depois de dez meses, levando em conta as expectativas que se tinha sobre ele?

É preciso reconhecer algo elementar. Para o sistema capitalista, a classe dominante brasileira, os latifundiários, os grandes comerciantes, os poucos industriais que restam e os banqueiros, o governo Bolsonaro é absolutamente exitoso. A proposta ultraliberal de Paulo Guedes inspirada no modelo chileno, que é um desastre há muito tempo, tem encontrado um apoio gigantesco de mídia, um apoio no Supremo Tribunal Federal, que permitiu as privatizações, e um apoio gigantesco do Congresso Nacional. Então ele está produzindo o efeito desejado para as classes dominantes.

Então é claro que, como consequência, está piorando a vida do brasileiro. Tem cinco milhões de desalentados, aqueles trabalhadores que já não procuram mais emprego, e temos vinte em pouco milhões que estão em desemprego. A miséria, a violência e o desespero se multiplicam.

E Bolsonaro continua ampliando a dependência e o subdesenvolvimento. Continua fazendo uma coisa terrível, que é submetendo a política externa brasileira a um alinhamento automático com Washington.

Ampliação da dependência e subdesenvolvimento, empobrecimento e um gigantesco assalto ao Estado. Esse assalto ao Estado está muito claro quando eles estão fazendo a desvinculação das receitas da União, que elimina o limite mínimo de investimentos em saúde e educação e que vai permitir aos banqueiros ampliar o endividamento estatal, numa negociata com os governadores.

Tal como fizeram agora a entrega da cessão onerosa do petróleo, que é uma riqueza trilionária concedida por alguns bilhões, pouco mais de R$ 100 bilhões. E os governadores entre os quais Flávio Dino, do PCdoB, do Maranhão e Rui Costa, do PT, da Bahia, apoiaram essa falcatrua, numa negociata vergonhosa entregando petróleo para ganhar alguns royalties. Veja que políticos vulgares…

Esse assalto ao Estado implica num tremendo ajuste sobre estados e municípios. O que é preciso saber: em 26 cidades brasileiras vivem 50% da população. Quer dizer, quando o governo ataca essas grandes cidades, tem que fazer esse tremendo ajuste que estão fazendo contra o povo, reduzindo serviços públicos, aumentando o endividamento, a festa do rentismo, e comprometendo indefinidamente a vida de milhões de trabalhadores, jogando na miséria, num abismo social sem remissão.

Então o governo Bolsonaro está indo bastante bem para aquilo que ele veio. E está fraudando o povo que acreditou, uma parte dele, que poderia mudar o sistema. Ele não está mudando o sistema, ele está aprofundando todos os vícios do sistema, como mostram essas acusações de envolvimento dele e de sua família com os milicianos do Rio de Janeiro. Revelam as entranhas de uma família que faz rachadinha nos mandatos. Isso é uma vergonha, algo abjeto que tem que ser escrachado de forma pública. Porque é inaceitável.

E do ponto de vista do povo, das classes populares, como avaliar este governo?

O povo está despertando, olhou na última eleição e disse Haddad não pode ser, porque Haddad é aquele sistema “petucano” horroroso. E também muita gente, milhões, votaram em branco, nulo ou se abstiveram. Não queriam o Bolsonaro, mas uma maioria votou em Bolsonaro. Só que essa maioria não queria Bolsonaro, na verdade era um voto de protesto contra o sistema. E agora estão se dando conta de que Bolsonaro é pequeno para resolver o problema. Então o povo está buscando no meio desse lusco-fusco uma saída

O que eu percebo é que a indignação popular aumenta, a ira do povo, justificada, cresce. O povo vai descobrir que não pode entregar seu futuro para esses políticos que estão aí. Então vai ter que encontrar uma tradução dessa angústia, dessa rebeldia e do futuro numa nova forma política. Eu chamo isso de Revolução Brasileira. Isso que está em curso no Brasil. Vamos ver como que isso vai se configurar. Mas o povo está tomando consciência de que Bolsonaro não é uma saída, é antes de mais nada um grande imbróglio, uma dificuldade gigantesca que está piorando em todos os sentidos uma situação que já era caótica e insustentável.

Um mantra dos governos nos últimos anos é o ajuste fiscal, e o Espírito Santo tem sido vendido como uma vitrine para o Brasil. Como  analisa isso?

Sempre quando estamos diante de um modelo, a primeira coisa que devemos fazer é desconfiar. Olha o êxito do modelo chileno. E de fato o Espírito Santo foi apresentado pelos tucanos e depois também pelos petistas como um êxito de gestão estatal dos estados e municípios. Agora, tem algo orwelliano nessa expressão ajuste fiscal.

Não é um ajuste fiscal, é um assalto sobre o Estado e a diminuição de serviços elementares para o povo. Primeiro parte do princípio de que a natureza da crise do Estado brasileiro e dos estados é de natureza fiscal, ou seja, que o governo na versão liberal arrecada muito e gasta muito mal e ainda por cima o tema da corrupção.

Não é esse o problema. Esse é um problema, sim. Mas o problema central é o gasto financeiro do Estado brasileiro. Nós não estamos numa crise fiscal, nós estamos numa crise de natureza financeira. E quando todos falam sobre ajuste fiscal, colocam o foco sobre a política tributária e sobre os mecanismos de gasto do poder estatal.

Agora, vamos pegar o orçamento da União. Qual é o principal gasto da União? É o gasto com juros. Cinquenta por cento de tudo que governo arrecadada e vende de estatais é destinado para o pagamento dos juros da dívida, que não fazem outra coisa senão deixar crescer.

Fernando Henrique pegou a dívida em R$ 64 bilhões e deixou em R$ 740 bilhões. O Lula de R$ 740 bilhões deixou em R$ 1,5 trilhão. Dilma de R$ 1,5 trilhões para em 3,5 tri. E o Michel Temer, corrupto e liberal, deixou em R$ 5 trilhões. E vai continuar crescendo porque o Paulo Guedes está fazendo a desvinculação das receitas da União para pegar esses recursos e endividar mais o Estado

A medida que esse endividamento financeiro cresce, as demandas para o ajuste fiscal crescem. O governo exibe o ajuste fiscal para ocultar o ajuste financeiro. Quem tá pagando o pato? A União em primeiro lugar com a diminuição de serviços, etc, e os estados.

E um estado como o Espírito Santo, quando começa a atuar nessa toada, na verdade está apertando o nó da forca. Exibindo a ideia de que as contas aqui estão ajustadas, quando já em 2013 teve uma resposta. O PT governou durante 13 anos, em 12 tinha superávit fiscal. No ano de 2013 o superávit era de R$ 111 bilhões. E a massa estava na rua pedindo serviços padrão Fifa.

Então essa canalha liberal que fica falando aí sobre ajuste fiscal oculta algo essencial: durante os 13 anos dos governos miseráveis do PT nós tivemos superávit fiscal. Qual era o problema? Estava tudo degradando, os serviços, mesmo com superávit fiscal. A canalha liberal mente sistematicamente sobre as contas públicas. Eu quero discutir com essa gente, para mostrar que é uma fraude.

O que estão fazendo? Os estados estão cada vez mais pendurados na União. Todos esses estados que fizeram  os ajustes, inclusive o Espírito Santo em especial, estão cada vez mais dependendo das ajudas federais e de Paulo Guedes. Cada vez mais. E outros estados que estão em pior situação como Rio Grande do Sul e Minas Gerais mais ainda.

Todos entraram na onda do fazer o ajuste fiscal, de ser o bom moço. Ora, com ajuste fiscal os estados estão perdendo autonomia completa e os governadores estão sendo capachos do presidente da República, independente de quem ocupa o posto. Então os governadores não têm mais autonomia nem para fazer um plano de desenvolvimento regional. E aqui no Espírito Santo tem uma atividade que é corroborada pelo que existe de pior no sistema brasileiro, que é uma economia exportadora.

Uma cidade portuária tem recursos extraordinários. Mas e a cidade que não possui? Então os capixabas têm que olhar para o Brasil. Se o Brasil afundar, o Espírito Santo afunda junto. Não vai ter uma saída capixaba, catarinense, pernambucana ou paraense. Vai ter que ter um pacto, que os políticos chamam de pacto federativo. Os ajustes fiscais estão empobrecendo os estados e fazendo com que ofereçam menos serviços. É por isso que Brasil, 26 cidades têm 50% da população, porque não é bom viver no Brasil inteiro. Cada vez mais os serviços se degradam. E as pessoas vão e buscam as cidades. Em busca de quê? De seu direito à cidade, da promessa de cidadania. Só que nas grandes cidades a vida é um inferno. Está cada vez pior como você pode ver nas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo.  

Esses ajustes fiscais estão debilitando o Estado e fazendo com que o processo migratório interno se aprofunde. E as cidades estão envelhecendo, outra característica da população brasileira. Não tem saída. E o Espírito Santo também não tem saída. Aquele modelo já não pode ser aplicado para ninguém hoje. E os grandes estados que estão à beira do abismo, cito aqui dois, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, mostram claramente que a saída aplicada aqui, “exitosa” por um tempo, não pode ser estendida pros demais estados, não tem como.

O Espírito Santo não pode ser modelo para nada. No máximo seria uma saída muito particular viável durante um curto espaço de tempo. Hoje as condições financeiras e fiscais do Estado brasileiro impedem que esse sistema prossiga ainda que a propaganda continue intensa.

Em pleno ajuste fiscal tivemos uma pedra na vidraça capixaba, que foi a greve da Polícia Militar durante o governo Paulo Hartung…

Você lembrou algo importante. O Brasil ficou observando aquela crise da Polícia Militar e da segurança pública aqui. Veja: quando salários dos policiais não são suficientes para se reproduzirem dignamente, nós vemos um sistema de corrupção entrando na tropa por múltiplas formas. Ou os policiais fazem bico ou esquemas de milícia, degradação que podemos ver por exemplo no Rio de Janeiro.

Então ao mesmo tempo em que o Espírito Santo exibia o êxito do ajuste fiscal, exibia as vísceras do modelo. O sistema de segurança pública colapsou aqui e mostrou para o Brasil os limites dessa proposta.

Estourou onde não se esperava. Não veio dos trabalhadores da saúde, da educação, dos servidores públicos.

Se um Estado não consegue manter a segurança pública, esse é um estado falido. Falido naquelas funções vitais. Parece que aqui já foi comprovado pela história. Temos que discutir a qualidade dos serviços públicos. Estou há muitos anos na área de educação, nunca a educação brasileira esteve tão degradada. Durante todos esses anos, nunca me iludi com aquela conversa fiada de Fernando Haddad, aqueles números são vergonhosos porque não batem na qualidade. Não bate na qualidade porque o sistema de educação não dá da autonomia científica e tecnológica para o país.

Em 94 o país pagava US$ 260 milhões em royalties e terminou pagando US$ 5 bilhões. Para que serve o sistema de universidades e institutos federais senão para redução da dependência científica e tecnológica? Se não serve para isso, não serve para nada. Segundo, educação brasileira está cada vez mais degradada naquilo que é essencial, dotar nossos estudantes de rigor científico e espírito crítico, nenhuma das duas coisas funcionam. Sou professor universitário, consagrei minha vida a fazer isso e esse é um problema sério: a educação está em colapso. E o que dizer do sistema de saúde?

Mas veja que até mesmo na área de segurança encontrei um dado estarrecedor. Hoje o número de agentes de segurança no setor privado é mais que o dobro de todas as Polícias Militares no Brasil. E esses coronéis, ex-militares que estão na política como Major Olímpio [senador de São Paulo pelo PSL], são donos de empresas de segurança. Quer dizer, enquanto degradam a segurança pública, fazem dessa degradação o business privado e se tornam milionários. E tem ainda uma força policial e militar que se presta a todo tipo de serviço, é um setor muito vulnerável à corrupção. 

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