Palestrante no Encontro do Corecon, Débora Cardoso defende programa estadual de transferência de renda
“O Espírito Santo é um estado com contas fiscais bastante organizadas atualmente, mas que tem uma prevalência de pobreza e extrema pobreza elevada, em torno de 23% e 14%, antes da pandemia. Até que ponto o saneamento das contas públicas de fato tem sido revertido pra sociedade? Organizar as contas públicas é extremamente importante pra dar capacidade pro governo implementar políticas de apoio pra melhorar a qualidade de vida da população. A primeira coisa é avaliar se isso tem sido feito no Espírito Santo”.
A avaliação é da economista Débora Freire Cardoso, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG), que palestrou sobre os Impactos sociais da pandemia e perspectivas para a proteção social no Brasil, durante o VII Encontro de Economia do Conselho Regional de Economia do Espírito Santo (Corecon-ES).
Com o tema Economia da Saúde e os Impactos da Covid-19 sobre o Desenvolvimento Econômico do Espírito Santo e do País, o Encontro foi transmitido ao vivo na última quinta e sexta feira (29 e 30) pelo canal no YouTube do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN).
“O que a gente precisa nesse momento pra aquecer a economia são políticas que incentivem a demanda e pelo que a gente observou até agora da experiência com auxílio emergencial, a mais exitosa pra manter o consumo das famílias são as políticas de transferência de renda”, afirmou Débora. Apesar de ser a política mais exitosa, o Auxílio Emergencial do governo federal – com custo de R$ 254 bilhões – deve ser complementado por políticas semelhantes nos estados onde as condições fiscais permitirem.
“O Espírito Santo estar hoje numa situação fiscal relativamente boa é muito importante, porque quando a gente avalia outros estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro, a situação é extremamente diferente: crise fiscal e baixa flexibilidade pra atuar numa crise como essa”, compara, remetendo-se a um conceito do precursor da macroeconômica John Maynard Keynes, em que “o Estado deve poupar e ter bons resultados fiscais nos momentos de estabilidade pra poder fazer um política fiscal contracíclica nas crises, investindo para estimular, reativar a economia”, explica Débora.
Aproveitando as boas condições no território capixaba, reafirma, “é extremamente importante o Estado atuar complementando a renda da população e pensar em alguma estratégia pra 2021, visto que os efeitos da crise vão demorar a passar”, contextualiza, ressaltando que, na população cuja renda familiar é menor que dois salários mínimos, a perda de renda em função da pandemia foi 20% maior que a média nacional.
“O Espírito Santo tem capacidade fiscal de fazer isso hoje [uma política de transferência de renda], diferentemente de outros estados. A questão é: isso tem sido feito? Ele tem atuado pra amenizar o impacto da Covid sobre a população?”, pergunta, ecoando uma posição já defendida pelo próprio Corecon-ES.
Bolsa Capixaba
Reiteradas vezes, no entanto, o governador Renato Casagrande tem se esquivado da possibilidade de criar um programa estadual de transferência de renda para amenizar os efeitos da pandemia de Covid-19, limitando-se a citar o Bolsa Capixaba, criado em seu primeiro governo, em dezembro de 2011, como parte do Programa Incluir. Na época, a transferência era de R$ 50,00 por família inscrita – renda mensal de até R$ 70,00 – e previsão de custo anual de R$ 20 milhões em 2012. Em março de 2012, segundo o governo estadual, a expectativa era de atender à parcela de 4,1% da população que vivia em situação de extrema pobreza, retirando 38.650 famílias dessa condição.
Atualmente, aproximadamente 26 mil famílias estariam sendo atendidas por ele. Somada a outras iniciativas estaduais, como o ES Solidário e os fundos de Assistência Social e de Combate à Pobreza, o montante anual somaria cerca de R$ 100 milhões, de acordo com declarações recentes de Casagrande veiculadas na mídia hegemônica.
Se a resistência do governador em criar um programa mais robusto de transferência de renda se escora no pressuposto que essa é uma tarefa da União, que emite títulos e moeda, como tem sido afirmado seguidas vezes pelo alto escalão do Palácio Anchieta, do lado do governo federal, o argumento de tratar-se de uma política muito cara, apesar de verdadeiro, foi em parte desmontado por um estudo liderado pela equipe de Débora na UFMG, que mostrou um retorno para o governo de 45% do valor investido, em forma de impostos.
“O governo deixava de considerar que é uma política que gera receita por impostos pagos ao governo. A renda mantida pelos três meses geraria 24% de cobertura do seu custo. É um retorno na forma de impostos que cobria parte do seu custo. Estendida, a Renda Básica teria uma cobertura de 45% do custo da política, considerando um número constante de pessoas no programa”, explica. “É importante considerar o custo líquido da política e não seu custo bruto. Considerar seus efeitos multiplicadores”, salienta.
45% volta pro governo
Em âmbito federal, Débora Cardoso enfatiza a necessidade de uma reforma tributária sobre a tributação indireta, mas principalmente sobre a tributação direta, de forma a romper com a tributação regressiva brasileira, tornando-a progressiva, com inserção de novas alíquotas para os mais ricos e também de tributação dos lucros e dividendos no imposto de renda de pessoa física. Um documento propondo essa transformação, o Tributar os super-ricos para reconstruir o país, recebeu forte apoio de Casagrande durante live realizada em agosto pela campanha Você acha justo?.
Dessas mudanças tributárias, explica, devem emergir os recursos necessários para um programa mais duradouro e robusto de transferência de renda, imprescindível para uma política de proteção social efetiva em todos os sentidos. “Eu vejo a proteção social no Brasil como estratégia de recuperação econômica a partir do aumento da progressividade”, aduz.
“Tirando recursos de uma faixa da população que tem mais vazamento de renda do sistema econômico [os mais ricos] e transferindo praqueles que consomem a maior parte da sua renda [os mais pobres], os efeitos multiplicadores são maiores”, explicita.
O raciocínio, afirma, é bastante óbvio, e ocorreu a muitos economistas, como ela, logo no início da pandemia. “Eu acreditava nessa crise como oportunidade pra que a gente inserisse discussões que a gente precisa fazer há muito tempo, como a tributação dos subtributados, dos mais ricos … o mundo inteiro está tributando lucros e dividendos das pessoas físicas e a gente não. É muito óbvio! Se as pessoas estão numa situação muito deplorável em termos de condições de vida, se a gente tem o aumento da pobreza, seria muito óbvio que, num país onde a gente tem um sistema muito regressivo, que privilegia o topo da distribuição, parece muito óbvio que a gente queira corrigir isso, tem onde tributar. Parecia muito óbvio também que a discussão a respeito do papel do Estado ganharia novos contornos exatamente porque a gente veria que o Estado tem um fator fundamental na estabilização e papel redistributivo fundamental. Mas o que a gente está vendo é um ambiente político que não tem favorecido essas mudanças”, relatou.
“Economia serve para cuidar das pessoas”
Uma das explicações para a resistência da alta cúpula do governo federal com essas mudanças no sistema tributário é a insistência em não rever o teto de gastos, estabelecido na Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, analisa Débora Cardoso.
“Mexer nos impostos de forma a canalizar a tributação dos mais ricos para uma transferência de renda aos mais pobres implica em rever o teto de gastos. E acho que esse é mais um motivo pra gente rever o teto de gastos. Não que a gente não precise de regras fiscais, mas a gente precisa discutir uma regra fiscal que não trate o gasto de forma homogênea, que permita a atuação estatal, a política fiscal de forma contracíclica”, argumenta a pesquisadora da UFMG.
A teimosia do governo Bolsonaro, no entanto, parece ir na contramão mundial. A pandemia, contextualiza Débora, tem provocado uma mudança de paradigma, com um aumento do percentual “tolerado” da dívida em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) dos países. “Voltar pra austeridade ano que vem, não expandir a proteção social, além do impacto social muito expressivo, é pior também pra dívida pública”, acentua, considerando que “sem aquecer a economia com a transferência de renda, a dívida pública tende a crescer”.
Nesses tempos pandêmicos, mais do que nunca, assevera a economista do Cedeplar, é preciso implantar um sistema tributário regressivo para custear uma transferência de renda robusta que possa reativar a economia e reduzir a dívida pública de forma sustentável e socialmente justa. Trata-se de um conjunto de ações fundamental, aduz, para honrar o próprio ofício de economista. “Se a Economia não cuida das pessoas, deixa as pessoas morrerem de fome, então podemos aposentar a função de economista na sociedade. Se equilíbrio fiscal significa deixar as pessoas morrerem de fome, então não está servindo pra muita coisa”, aponta.