ES se submete à ideologia neoliberal, avalia Arlindo Villaschi. Estudo aponta: tributos do agronegócio são “perto de zero”
O agronegócio é um dos dois grandes segmentos em que se baseia o sistema de acumulação brasileiro, ao lado do financeiro (bancos, corretoras). No Espírito Santo, está historicamente instalado por meio da cafeicultura, pecuária e eucaliptocultura e cumpre bem a parte que lhe cabe na drenagem dos recursos públicos que poderiam ser aplicados no apoio a setores produtivos, como a agroecologia e os micros, pequenos e médios negócios do campo e da cidade, bem como no bem-estar social da população.
A avaliação é do economista e professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Arlindo Villaschi, para quem a priorização da Nota A no Tesouro Nacional, em meio à tamanha crise econômica intensificada pela crise sanitária da Covid-19, é uma prova lamentável do quanto o Estado se submete à ideologia neoliberal, a despeito do suposto progressismo do atual governo.
“A ideologia neoliberal diz que a estrutura do Estado é feita pra garantir a estabilidade da moeda no plano federal e a estabilidade das contas públicas. Numa crise como a que estamos vivendo, deveria minimamente afrouxar esse dogma do ajuste fiscal, que é feito em cima daquilo que poderia gerar bem-estar social e crescimento econômico. Não falta dinheiro para incentivos fiscais, seja para empresas que estão estabelecidas aqui há muitos anos, sejam empresas que estejam sendo atraídas agora, que além da Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste], tem dinheiro do governo estadual, pra se instalar num local que já é privilegiado por si, porque o Espírito Santo já é um local privilegiado por si só”, observa.
O economista menciona ainda a esfera municipal, onde é muito comum os casos de “prefeituras que não compram nem 30% de produtos agrícolas locais para a merenda escolar, mas que doam terrenos e isenções fiscais pra empresas que geram pouquíssimos empregos”, tampouco apoiam as escolas família, que “dão sustentação a uma cultura ligada a morar no interior e produzir alimento, a agricultura, que se contrapõe ao agronegócio”.
O que gera desenvolvimento em municípios pequenos, ressalta, são basicamente a agricultura familiar voltada à produção de alimentos – e não aquela sequestrada pelo comércio internacional do café convencional como commoditie – e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Desenvolvimento na forma de empregos de qualidade, distribuição de renda e geração de tributos para as economias locais. Cenário muito diferente do que é criado pelo agronegócio, que provoca êxodo rural, concentra dinheiro nas mãos dos latifundiários e grandes empresas multinacionais e resulta em uma arrecadação irrisória de tributos “perto de zero”, como apontou a Auditoria Cidadã da Dívida Pública.
Tributos pagos são “perto de zero”
No artigo “O Agronegócio e a dívida pública”, publicado em agosto passado, a coordenadora nacional, Maria Lucia Fattorelli salienta que “a análise dos orçamentos públicos de todas as esferas – federal, estadual e municipal – mostra que a participação do agronegócio no financiamento do Estado é negativa, devido às inúmeras isenções e subsídios, incentivos fiscais etc. de tal maneira que os tributos arrecadados do setor são próximos de zero”.
Também integrante da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Maria Lucia Fattorelli acrescenta que “o que de fato alimenta a população é a pequena agricultura familiar, que tem recebido pouca ou nenhuma atenção dos sucessivos governos”, mesmo assim é “o grande agronegócio [que] recebe quase toda a verba pública destinada à Agricultura, além de subsídios tributários e creditícios, com acesso a empréstimos subsidiados, investimentos em infraestrutura etc.”.
Apesar da balança comercial favorável e dos números crescentes de exportação, “o imenso volume de dinheiro movimentado pelo setor não é refletido nos orçamentos públicos”, pois quem se beneficia com essas operações, sublinha a autora, são “os grandes latifundiários do agronegócio e as grandes empresas nacionais e internacionais (trading companies), que comercializam e financiam tanto o agronegócio como a bancada de políticos que garantem os privilégios do setor na legislação do país”. Entre os nomes arrolados, está um bem conhecido dos capixabas: Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), listada ao lado de “BRFoods, Monsanto, Seara, Bunge, Raizen, Tereos, Phillip Morris, Souza Cruz, Amaggi, Basf, Bayer, Yara, Klabin, Rabobank e Santander”.
Essa injusta concentração de lucros ocorre no Brasil por conta de alguns mecanismos instalados ainda na Ditadura Militar, que “contou com grande apoio da elite do agronegócio”, explica. “A moeda estrangeira advinda das exportações de commodities ingressa no país por meio do Banco Central (a partir de 1964, quando foi criado) e é trocada por moeda nacional, que é entregue ao latifundiário do agronegócio. Assim, o latifundiário recebe todo o dinheiro das exportações, enquanto a moeda estrangeira fica em poder do Banco Central, que a tem utilizado principalmente para pagar dívida externa ilegítima, além de pagamento de importações (muitas delas destinadas ao próprio agronegócio) e remessas de lucros ao exterior”.
Nas décadas do regime militar, complementa a coordenadora da Auditoria Cidadã, “o país foi duplamente pilhado: a dívida externa possuía inúmeras inconsistências e indícios de ilegalidades, ilegitimidades e até fraudes; e o ingresso de divisas advindas das exportações se consumiam nos pagamentos dessa dívida ilegítima”.
As verdadeiras causas da inflação dos alimentos
Importante ressaltar ainda que “a desculpa usada pelo BC para esse nocivo ‘enxugamento’ de moeda é falsa, como se o ‘excesso de moeda em circulação’ provocasse inflação, sendo que no Brasil a inflação tem outras razões completamente distintas do alegado: decorre do aumento abusivo dos preços administrados (combustíveis, energia, transportes etc.) e da alta dos preços de alimentos, devido à política agrícola e agrária que favorece o agronegócio de exportação, descuida de estoques reguladores de alimentos e não estabelece uma política séria de segurança alimentar”, desmascara.
Na verdade, aduz , “a inflação de alimentos decorre do modelo primário-exportador, e não de um suposto ‘excesso de moeda’ ou ‘demanda aquecida’, como alega o Banco Central para justificar o lesivo aumento de juros. Por sua vez, os juros altos amarram toda a economia e dificultam cada vez mais a sobrevivência das pequenas e médias empresas, assim como das indústrias, empurrando o país para a reprimarização dos tempos coloniais”.
Dupla calamidade
Arlindo Villaschi assinala tratar-se da “velha ideologia do mercado, que é precificado em dólar”, fazendo com os alimentos o mesmo que acontece com os combustíveis. E que, a reboque, traz um “aprofundamento lamentável” na dependência de agrotóxicos. “O Brasil é uma grande porteira aberta pra todo tipo de prática que já são banidas em várias partes do mundo. É uma calamidade”. Dupla calamidade, aliás, porque, do outro lado, há uma expansão absurda do consumo de remédios que tratam de doenças provocadas pelo envenenamento por pesticidas, herbicidas, fungicidas e companhia. “É emblemática a associação da Monsanto com a Bayer – uma estraga a saúde e outra vem com remédio que não melhora a saúde”, ironiza o acadêmico capixaba.
A agroecologia e a agricultura familiar, ao contrário, voltaram para o fim da fila dos investimentos públicos, ao lado da ciência e tecnologia e outras áreas vitais para o desenvolvimento de fato da nação, com distribuição de renda e oportunidade e garantia de direitos constitucionais. “É um crime! Na época do pós-constituinte, a soberania alimentar tinha peso. Isso tudo foi praticamente cancelado com o desmonte das pesquisas na Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e institutos estaduais voltadas para sementes crioulas e outros temas caros para a agricultura familiar e agroecologia. Quando não foi totalmente desmontada, perdeu substancialmente importância nos projetos de pesquisa”.
É preciso reconstitucionalizar o bem-estar social
Como bem apresentou a coordenadora da Auditoria Cidadã, a pilhagem de recursos públicos promovida pelo agronegócio é antiga, mas Villaschi lembra que houve dois períodos na história pós-ditadura militar em que, mesmo continuando a se beneficiar da política econômica brasileira, o setor viu serem aplicados mecanismos estabelecidos na Constituição de 1988 que conseguiam também fazer chegar parte da riqueza nacional para os menos favorecidos, por meio de orçamentos menos minguados em pastas como cultura, saúde e educação, bem como uma série de linhas de atuação de fortalecimento das atividades produtivas.
“Naquele momento da constituinte, as coisas não avançaram muito, mas houve algumas negociações. Depois, mesmo estando na Constituição, durante os governos neoliberais de Collor, Itamar Franco e FHC, esses direitos não estavam sendo observados. Em seguida, naquele curto período de 12 anos de governos mais progressistas, a Constituição passou novamente a ser mais aplicada. Agora, com o golpe de 2016, esse poderio econômico, que tem um rebatimento nas instituições, principalmente no Congresso Nacional, voltou com a carga total”, lamenta, citando a emblemática Bancada BBB – Bala, Bíblia e Boi.
Após o golpe, ressalta, houve uma “desconstitucionalização dos gastos com saúde e educação e outros setores para o bem-estar da sociedade, para que 45% do orçamento seja garantido no pagamento dos rentistas, sacrificando a população”.