Contraria o bom senso, desrespeita os estudantes e suas famílias, e demonstra total falta de conhecimento sobre os princípios elementares da educação básica. É o que se pode concluir a partir da última decisão anunciada pelo secretário de Estado de Educação, Vitor de Angelo, no que concerne o sistema de educação do Espírito Santo durante a pandemia de Covid-19.
Em coletiva realizada na última quinta-feira (25), o secretário e o governador Renato Casagrande (PSB) informaram que as aulas remotas passarão a contar como dias letivos a partir do mês de julho. E as que já foram realizadas, por meio do Programa EscoLAR, passarão por uma avaliação diagnóstica com objetivo de validação. O conteúdo que for aprendido pelo estudante será validado como dia letivo. O que não for, será resposto em aulas extras, “possivelmente não presenciais”, explicou Vitor de Angelo.
Para o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Itamar Mendes da Silva, a medida não tem qualquer fundamento teórico ou prático. “O que está se tentando é passar o trabalho de orientação e problematização para as famílias, que não estão preparadas para fazê-lo”, afirma.
Vice-coordenador do Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo (Lagebes) e diretor estadual da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), Itamar ressalta que “educação não é só socializar conhecimento, divulgar informação e oferecer acesso a conteúdo; é fundamentalmente formar consciência cidadã, a capacidade de análise, de autonomia pra buscar conhecimentos na realidade, para ler a realidade a partir de certos elementos que dialoguem com os interesses quer o aprendiz tem”. E isso, sublinha, “é uma tarefa que as famílias não estão preparadas pra fazer. Atribuir às famílias a responsabilidade pra fazer a orientação é extrapolar as possibilidades que as famílias têm”.
A parceria das famílias sempre foi bem-vinda e mesmo desejada e fomentada pelos educadores. Mas uma ação “lato sensu” e não “stricto sensu, de ensino de conteúdo. Não se terceiriza isso”, argumenta.
Na coletiva, governador e secretário garantiram que
as aulas presenciais só retornam quando o índice de transmissão (Rt) for menor que 1. Atualmente, segundo o inquérito sorológico, o Rt do Estado é de 1,3, estando em 1,2 na Grande Vitória e 1,7 no interior. As estimativas, no entanto, não capturaram o impacto da drástica redução do isolamento social verificada nos últimos dez dias e cujos efeitos só serão sentidos dentro de aproximadamente duas semanas.
Em função da agora assumida impossibilidade de determinar uma data para a reabertura da escolas, o secretário disse que o calendário escolar deste ano será híbrido, alternando aulas presenciais e remotas, enquanto perdurar a pandemia e seus seguidos ciclos de crescimento e redução das taxas de contaminação, proporcionais ao maior ou menor isolamento e distanciamento social conseguido. É uma linha de trabalho, que “não fica sujeita à dinâmica do vírus, porque ela vai continuar com a escola aberta ou fechada”, apontou.
Nem o ‘dever de casa’
A decisão da Sedu, afirma o educador, “vai ampliar a desigualdade educacional” que já existe em tempos comuns entre as populações de periferia que “têm menos acesso àquilo que tem sido prometido como mudança de vida e melhoria, que é a educação”.
“Existem comunidades em que não se manda as tarefas para casa, porque as famílias não têm condições de acompanhar”, seja pela coabitação de muitos familiares em lares de poucos cômodos, seja porque os adultos trabalham longe, “saindo de madrugada e voltando à noite pra casa”, descreve. “Qual é a condição de acompanhar os estudos das crianças ou pré-adolescentes e adolescentes?”, inquire.
O cotidiano da família da ajudante de padaria Elaine Aparecida Ramos, em Aracruz, norte do Estado, ilustra bem a situação relatada pelo diretor da Anpae.
“Saio seis da manhã e volto sete da noite. Eles [os gestores do governo do Estado] não entendem que o pai e a mãe que chegam cansados em casa não conseguem ajudar as crianças? O máximo que a gente conseguia fazer era olhar o caderno, ver o que eles tinham feito na escola. Não tem como sentar e fazer toda as tarefas junto”, conta.
“Por mais que eu tente, eu só consigo um pouco com a minha filha que está no sétimo ano”, relata. O de quatro anos não está fazendo nenhuma atividade escolar. Os outros filhos, no nono e no ensino médio, fazem o que podem sozinhos, já que são mais velhos e têm, em tese, mais autonomia.
Em tese, porque a própria Elaine também é estudante, do primeiro ano do ensino médio no programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e, mesmo sendo adulta, também está com muitas dificuldades para dar continuidade aos estudos. “Eu era das alunas que acaba primeiro as tarefas e ajudava todo mundo. Eu sei que esses hoje estão copiando as respostas todas do Google”, lamenta.
“Só tem uma professora que consegue colocar a matéria na minha cabeça, eu consigo lembrar da explicação dela pro resto da vida”, diz. Mas com as escolas fechadas, esse apoio é muito reduzido. “Vou ficar ligando pra ela 100 vezes? E os outros alunos também. Como é que o professor pode ficar atendendo cada aluno separado? E os outros professores que eu já não conseguia entender dentro da escola, agora que não consigo mesmo!”
‘Falar é fácil’
“Só veem números, não enxergam a vida da gente. O governo só quer estatística de aprovação na escola, não tá preocupado se está aprendendo ou não”, desabafa Elaine. “Dizer que a família tem que apoiar é fácil, difícil é fazer”, provoca. “Tem casa que o pai e a mãe não estão nem aí pro filho. E isso afeta muito a vida do estudante, que só tem educação na escola, se apega ao professor, porque falta o exemplo em casa. Tenho amigos de filhos meus que não têm estrutura em casa, e hoje estão na rua se perdendo, porque era o professor que dava esse apoio pra ele”, relata.
“Se eu tentasse ensinar meus filhos em casa, o Conselho Tutelar não ia deixar, mas agora o governo quer que a gente ensine nossos filhos em casa, com a escola fechada!”, critica.
“É insano achar que um ensino remoto pode dar certo”, afirma. “Não é suficiente dar internet, porque o aluno precisa do professor. A família brasileira não tem estrutura pra isso”, assevera.
‘Perder o ano, mas não perder a vida’
A mãe e estudante declara também seu temor em mandar os filhos para a escola nos períodos em que o governo determinar, devido ao Rt menor que 1 ou outro fator que vier a ser definido.
“Eu prefiro que meus filhos percam o ano a perder a vida. Tenho dois filhos com bronquite, minha mãe, meu irmão e meu pai são hipertensos. Não vou colocar minha família em risco. Todos os pais deveriam se conscientizar que se até agora não foi feito nada, que recomece ano que vem”, suplicou.
“Se for voltar, tem que ter reunião com todos os pais. Os professores não conseguem controlar os alunos quietos em sala de aula, imagina com epidemia! Se não controla entrada de drogas, vai controlar máscara e álcool em gel?”, questiona.