Mobilização contra o TAG no ES capilariza luta dentro dos municípios e ganha repercussão nacional
O município cearense de Sobral, referência para o Termo de Ajustamento de Conduta (TAG) proposto pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) para o governo do Estado e os 78 municípios capixabas, fechou mais de metade de suas escolas e gasta R$ 2 milhões por mês com transporte escolar. Outro caso considerado de sucesso pelos conselheiros da Corte de Contas é Oieiras, no Piauí, que também fechou quase 60% da rede municipal.
Os gestores dos dois municípios nordestinos apresentaram suas experiências durante a solenidade de assinatura do TAG, ocorrida no auditório do TCE-ES nesta quinta-feira (15). Do lado de fora do prédio, cerca de 100 pessoas, entre estudantes, professores e pesquisadores da Educação do Campo, vindos de vários municípios do interior e da Grande Vitória, foram impedidas de entrar no evento e realizaram um protesto pacífico, com distribuição de panfletos e falas ao microfone, sensibilizando os passantes e, principalmente, os prefeitos e secretários que participaram.
Entre as organizações, estavam a Federação dos Trabalhadores Rurais do Espírito Santo (Fetaes), professores e estudantes do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do curso de Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Fórum de Educação de Jovens e Adultos (Fórum EJA).
Um mês e meio antes, um grupo maior havia realizado um primeiro protesto nas escadarias do Tribunal de Contas e uma comitiva foi recebida pelo presidente, Rodrigo Chamoun. O cerne do pleito foi a retirada de todas as escolas do campo do acordo, estendendo, portanto, a exclusão que já havia sido aprovada apenas para as escolas de assentamentos da reforma agrária. Ao longo da exposição dos argumentos feito pelos educadores, o presidente mostrou-se sensibilizado e prometeu que nenhuma decisão seria tomada antes de uma nova reunião com os coletivos ali representados com outros conselheiros, especialmente Rodrigo Coelho, que lidera o TAG dentro da Corte.
Exatamente duas semanas após esse encontro, no entanto, o plenário da casa decide aprovar a versão final do texto e encaminhar os chamamentos dos municípios e do Estado para a assinatura, sem qualquer novo diálogo com os educadores.
Uma semana após a decisão unilateral dos conselheiros, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, vem ao Espírito Santo para participar de eventos na Assembleia Legislativa e na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pediu uma abertura de diálogo com o Tribunal de Contas para aprofundar o debate proposto pelos educadores no dia do primeiro protesto e enfatizar a necessidade de proteger as escolas do campo para que de fato haja avanço na qualidade do ensino oferecido às crianças e adolescentes.
“Tribunal do pânico”
A exposição dos fatos mostra a ideologia autoritária e excludente que guia Rodrigo Coelho e demais conselheiros que empreendem a adoção do TAG e do modelo de Sobral à educação capixaba, com tácito apoio da Secretaria de Estado da Educação (Sedu), cujo gestor, Vitor de Angelo, preside o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed). As falas dos gestores nordestinos nesta quinta-feira enfatizam a imposição do fechamento de escolas e o não reconhecimento dos graves ataques que a medida provoca na vida das comunidades rurais.
“Quando chegamos eram 98 escolas. Para que pudéssemos ter governabilidade sobre o sistema, foi preciso reduzir para 38 escolas. Fizemos a nucleação de escolas, mas isso gerou um conflito, porque alguns pais não quiseram que os alunos começassem a se deslocar de transporte escolar”, disse o prefeito de Sobral, Ivo Gomes (PDT).
“Em Sobral, são 140 km de uma ponta à outra do município. São 14 distritos, 20 localidades, assentamentos. Precisamos de uma rede de transporte escolar enorme. São R$ 2 milhões por mês só de transporte escolar, para garantir que todas as crianças tenham acesso à escola boa. Que é aquela que tem biblioteca, laboratório, refeitório, quadra, toda uma infraestrutura que em escola de duas salas, ou multisseriadas, é impossível garantir”, completou.
Conforme destaca o TCE, o principal indicador de sucesso da lógica da extinção das escolas do campo é a elevada pontuação no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Educadores do campo alertam que as escolas multisseriadas da zona rural não podem participar do Ideb, o que pode explicar pelo menos em parte a aversão que os gestores membros do Consed e conselheiros da Corte sustentam por elas.
O relato da secretária de Educação de Oeiras, no Piauí, Tiana Tapety, é semelhante. Segundo o TCE, o município reduziu de 67 para 28 o número de escolas. “Inicialmente houve resistência de comunidades que perderam escolas, já que seus filhos deveriam ser deslocados para espaços escolares situados a muitos quilômetros, além de perderem um espaço de referência para a comunidade”, registra o Tribunal, acrescentando que o serviço de transporte escolar também foi reestruturado e “atualmente é um item importante das despesas municipais em educação”.
Em sua fala, o presidente Rodrigo Chamoun reconheceu a imagem amedrontadora que a Corte tem diante de prefeitos e secretários, afirmando que o modus operandi atual é outro e que a adesão da maior parte dos municípios é sinal dessa nova realidade. “O tribunal do pânico, que só pune, já é passado, no Brasil inteiro. O pânico paralisa. O se deve fazer é respeitar a regra para atravessar os desafios tranquilamente”.
Perverso
Nesta quinta-feira, 55 municípios assinaram o termo e 23 não aderiram à proposta (veja listas abaixo), por entenderem os prejuízos advindos da municipalização forçada dos anos iniciais do ensino fundamental, conforme vem alertando, há um ano, um conjunto de organizações da sociedade civil, ligadas especialmente à Educação do Campo, e que se fizeram presentes nas duas manifestações públicas em frente ao Tribunal de Contas. O fechamento de escolas de comunidades rurais, acentuam, é o principal efeito colateral previsto.
Iúna, na região do Caparaó, é um dos que não aderiu. Em vídeo publicado no dia do evento, a secretária, Edna Viana Fonseca, expôs os motivos da negativa, dirigindo-se especialmente às comunidades de Nossa senhora das Graças e Pequiá, que se manifestaram contrárias ao TAG. “Nós ainda não temos segurança do que vai ser estabelecido. (…) São mudanças importantes que estão para acontecer que afetam a educação em especial os professores DTs [Designação Temporária] do Estado. Eu não posso colocar em risco a educação do município. (…) Há muito tempo que [o TAG] está sendo negociado e, no meio do caminho, o Estado resolveu mudar a postura. Assim como foi prometido por mim quando estive nessas duas comunidades, eu não assinarei nenhum termo sem antes ter certeza de que a educação do município não vai ser prejudicada”.
O secretário de Educação de Santa Maria de Jetibá, na região serrana, já havia se manifestado contrário, conforme noticiado em Século Diário, por entender a impossibilidade do município arcar com os custos dos anos iniciais do ensino fundamental sem garantias de contrapartida prévia pelo governo do Estado. O cuidado maior, enfatizou, é a preservação das escolas do campo e, consequentemente, do modo de vida das comunidades rurais, formadas basicamente por famílias de pequenos agricultores produtores de alimentos que abastecem a Grande Vitória e outros municípios capixabas onde o agronegócio expulsou os camponeses e reduziu a capacidade de produzirem alimentos.
Professor da rede estadual de Santa Maria, integrante do Comitê Capixaba da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Coletivo Resistência e Luta, Swami Cordeiro Bérgamo reforça as palavras do secretário do município pomerano, ao criticar o modelo defendido pelo TCE-ES e a Sedu. “Considero inaceitáveis as colocações do prefeito de Sobral, senhor Ivo Gomes. Segundo ele, a ‘fórmula mágica’ da educação de Sobral passa por fechar escolas do campo, gastar milhões mensais com transporte escolar e acabar com a gestão democrática, restringindo a participação da comunidade escolar. Isso não é pensar nas crianças e o seu direito à educação”.
A estratégia de fechar escolas, sublinha, vai na contramão das necessidades das comunidades mais vulneráveis das periferias e, principalmente, das comunidades rurais. “Não dá para ficar importando modelos, desconsiderando a realidade de cada município, seu relevo, sua formação cultural e modo de vida do nosso povo. Escola nucleada, com grande número de estudantes, salas lotadas, que demanda o deslocamento por transporte escolar, rompe com o modo de vida camponês. Há alternativas que devem ser consideradas. A Educação do Campo, por outro lado, busca uma educação pública de qualidade que valorize a identidade cultural dos povos do campo, numa vertente de formação humana e de desenvolvimento local sustentável, envolvendo as famílias em uma relação de pertencimento com escola”.
Integrante da coordenação colegiada Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces), que lidera a mobilização contrária ao TAG, a educadora Maria Geovana Melin estende o alerta pomerano a demais povos tradicionais. “A gente sabe de municípios com comunidades tradicionais que precisam ser atendidas dentro da legislação própria. Não dá para vir um TAG com uma norma genérica como essa. O que o Tribunal de Contas precisa fazer é acompanhar a aplicação dos recursos públicos, inclusive do transporte escolar, que é alvo de tantas denúncias de irregularidades”.
A perseguição contra as escolas multisseriadas, salienta, também precisa cessar. “É o que mais machuca o coração da gente. A gente tem as Diretrizes Estaduais da Educação do Campo, que foram aprovadas pelo Estado no ano passado, que afirmam a importância das multisseriadas, a metodologia utilizada, o trabalho multietário que é feito, semelhante ao da Educação de Jovens e Adultos [EJA]”, roga.
A preferência em se investir em transporte escolar é outro ponto que precisa ser superado, enfatiza a educadora do campo. “Os conselheiros e gestores precisam entender o que é transportar crianças em distâncias tão grandes, com as condições das estradas e dos carros utilizados. No campo e nas cidades também. É muito perverso tudo isso”, lamenta.
A educadora também ressalta a postura desonesta da Corte junto às organizações mobilizadas. “Quando estivemos com o presidente do Tribunal de Contas, ele fez questão de tirar foto com a gente, garantiu que teria uma nova reunião e que inclusive poderia custear as despesas dos camponeses que moram no interior. Mas a devolutiva que ele nos deu foi aquela decisão do plenário sem ouvir os movimentos”.
Conquistas
Numa avaliação geral da mobilização até o momento, no entanto, Maria Geovana destaca as conquistas. Considerando que a Corte previa a assinatura em abril de 2022, incluindo todas as escolas do campo do Estado e com municipalização já a partir de 2023, houve avanços. Além da retirada das escolas de assentamento, um número considerável de municípios não aderiu prontamente ao termo. A manifestação nesta quinta-feira, assinala, foi, também, uma forma de apoiar a decisão dos prefeitos e secretários que não aderiram e de apresentar o ponto de vista dos movimentos sociais do campo aos que aceitaram o TAG.
Outro avanço foi o prazo para implementação do termo, pois nem todos precisam se comprometer com a municipalização já em 2024, já que é o plano de ação de cada município que vai apontar esse prazo.
A assessoria de imprensa do Tribunal confirma a flexibilidade do prazo, ressaltando que o que vai decidir a data é o tamanho de cada rede. “Naquelas redes em que a oferta ainda é residual e não haveria dificuldades de transferência dessas matrículas para o município, é para ocorrer para 2024. No entanto, em municípios em que a oferta da etapa pelo Estado é numérica ou proporcionalmente garante e/ou haja dificuldades sejam de infraestrutura, logística, pedagógica, etc. (…) o plano de ação deverá prever as ações de médio e longo prazo”.
Estudante de Pedagogia da Ufes oriunda de Santa Maria de Jetibá e uma das lideranças jovens do movimento, Tamiles Gomes Pereira ressalta que um dos focos da mobilização agora serão os gestores municipais. “Até o final do ano os municípios precisam apresentar seu plano de ação para o Tribunal. Vamos ficar em cima das representações municipais, das secretarias, dos conselhos, para saber como vão ser feitos cada plano de ação. Os secretários afirmam que são obrigados a assinar para não sofrerem sanções do Tribunal de Contas, faltam desse medo com a gente. Os movimentos estão em alerta e conscientes da responsabilidade que têm agora, junto com os municípios, para fazerem um bom plano de ação, que inclua as necessidades das comunidades”.
“Precisamos fortalecer os conselhos municipais de Educação do Campo para fazer esse debate e envolver as promotorias municipais do Ministério Público. O presidente da Amunes [Associação dos Municípios do Espírito Santo, presidente prefeito de Ibatiba, Luciano Pingo (sem partido)] se comprometeu a se reunir com o Comeces”, complementa Maria Geovana.
Além da capilarização municipal, a integrante do Comeces destaca a expansão nacional que a luta vem conquistando. “A Sedu e o Tribunal estão pautando Goiás, Sergipe … E a mobilização da Educação do Campo também está chegando em outros estados. Na próxima semana vamos levar o assunto para o Fórum Nacional de Educação do Campo”.