No Espírito Santo, muitos se ouve falar, por exemplo, no tradicional beiju, iguaria produzida principalmente nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte. Entretanto, esse e tantos outros aspectos da cultura desse povo muitas vezes são esquecidos nas salas de aula dessas mesmas comunidades. “A questão é que os currículos escolares são urbanos e eurocentrados”, diz a professora, pesquisadora e escritora Noelia Miranda, que aponta a falta de investimento na formação docente quilombola como um dos motivadores dessa realidade.
Ela chegou a essa conclusão em seus estudos de mestrado, que deram origem ao e-book “Formação de Professoras/es e Lideranças Quilombolas de Sapê do Norte, em Conceição da Barra – ES”, disponível para download gratuito e no qual estudou as comunidades quilombolas de Conceição da Barra, norte do estado. Noelia afirma que a realidade das escolas quilombolas é de ausência dos valores tradicionais da comunidade e de seus saberes.
De acordo com ela, questões como a manipulação das ervas medicinais; religiosidade; manifestações folclóricas, como Ticumbi e Congo; e tecnologias, como a da produção de farinha; não se fazem presentes nas unidades de ensino, gerando, entre outros problemas, a falta informações sobre a origem dessas localidades e, consequentemente, a falta de reconhecimento como quilombolas principalmente por parte de alguns grupos de jovens.
“Muitos jovens não têm ciência de que aquilo é uma comunidade quilombola. Um dos motivos é porque a escola não apontou, por isso têm dificuldade de se ver enquanto quilombola”, diz. A pesquisadora aponta, ainda, a ausência de uma formação que contemple a reflexão sobre as violências vividas pelas comunidades na atualidade, como a invasão de terras por parte de empresas, a exemplo da Suzano, e a degradação ambiental causada por elas. “As pessoas olham ao redor e só veem eucalipto. Os rios estão secos. Porém, é necessário que as pessoas compreendam o porquê dessa realidade”, defende.
Essa situação, acredita a pesquisadora, poderia ser superada por meio da formação docente com foco na realidade quilombola. De acordo com ela, os professores dessas comunidades participam de qualificações junto aos da área urbana, sendo disponibilizado para eles o mesmo conteúdo. “Não existe um momento de diretrizes para a educação quilombola”, relata. Entretanto, dentro das comunidades há ações de resistência quanto a isso, como no caso de docentes que buscam inserir no conteúdo a realidade local.
“As professoras, e digo professoras por que a maioria é mulher mesmo, fazem o movimento por iniciativa delas. Mas precisamos de política pública, não somente da boa vontade dessas profissionais”, defende.
Insuficiência de vagas
Não é somente a falta de formação para professores o problema da educação quilombola no Sapê do Norte. De acordo com Noelia, nas comunidades é ofertado somente o ensino fundamental I, ou seja, do primeiro ao quinto ano, e, mais recentemente, a Educação de Jovens e Adultos (EJA). No sexto ano, os estudantes têm que migrar para escolas da zona urbana.
Observa-se, a partir daí, algumas mudanças na vida escolar. Uma delas é a redução no índice do Instituto de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). “Enquanto os alunos estão na escola da comunidade, a média é razoável. Quando saem, ela cai. A evasão aumenta, pois os estudantes estão em um lugar onde não se veem, não cabem, não são aceitos”, diz.
Valorização do conhecimento europeu
A realidade exposta em sua pesquisa, defende Noelia, não é encontrada somente nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte. Quando se trata do Brasil como um todo, afirma, existe a valorização do conhecimento europeu em todas as áreas de conhecimento. “A matemática que nos é ensinada é uma matemática branca, europeia, não se estuda, por exemplo, os matemáticos egípcios”, lamenta.
Conforme aponta Noelia, muitas vezes, no ambiente escolar, se fala de negritude somente quando se refere à escravidão, mesmo assim, de maneira muitas vezes distorcida, como se não tivesse ocorrido resistência contra a violência dos brancos. “É preciso mostrar também a história de antes da escravidão. Em África, os negros dominavam diversas tecnologias, como as da mineração, e os brancos exploraram muito esse conhecimento em Ouro Preto, por exemplo, para escavação em busca do ouro”, recorda.
A predominância de heróis brancos, de personagens brancos nos livros didáticos e literários, também contribui para que não haja diálogo com a realidade dos estudantes negros, acredita Noelia. Ela exemplifica com uma situação vivida por ela na rede municipal de ensino de Viana, quando ocorreu um concurso de príncipes e princesas no qual foram apresentados às crianças somente personagens brancos.
“Uma mãe negra falou que suas filhas não iriam participar, pois ela tinha três. Duas seriam Branca de Neve e uma a Cinderela. Além das roupas, ela teria que pagar o salão para alisar o cabelo das meninas, pois tinha que ficar parecido com o das princesas, senão as pessoas iam rir”, recorda. Diante disso, Noelia conseguiu incluir no concurso do ano seguinte princesas e príncipes negros e indígenas, como Zacimba Gaba, princesa angolana escravizada no norte do Espírito Santo, fundadora de quilombos e que liderou diversas revoltas pela liberdade.
A história dessa importante liderança foi contada em um livro infantil escrito por Noelia, o “Zacimba Gaba, a Princesa Guerreira – A História que Não te Contaram”. Depois veio Zabelê, o Pássaro Encantado, que escreveu com Paulo Tássio Borges e no qual conta a história da índia Zabelê, de Cumuruxatiba, na Bahia, que lutou pela retomada do território de seu povo.