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Cursinhos populares crescem no Espírito Santo

Os cursinhos populares têm sido uma ferramenta crescente de luta pelo acesso à universidade, formação crítica e transformação social no Brasil. Surgidos a partir dos anos 90, principalmente em São Paulo e com especial participação do movimento negro, este tipo de iniciativa tem como base a educação popular e como forma a organização como movimento social. Apareceu no Espírito Santo há pouquíssimos anos, mas experimenta uma notável ascensão desde o ano passado.

“Os cursinhos populares servem como ferramentas de transformação e reparação social. De romper as barreiras que impedem as camadas mais pobres, marginalizadas e excluídas, de terem acesso à direitos tão básicos como educação gratuita e de qualidade, além de contribuir para que se construam outras narrativas possíveis, que possam romper com as estatísticas negativas e oferecer possibilidade de escolhas”, afirma Mayara Santiago, fundadora do Travestibular, que busca facilitar o acesso ao pré-vestibular de travestis e pessoas transexuais, além de apoiar na conclusão de ensino fundamental e médio.

Para Lula Rocha, coordenador da Rede Afirmação, que este ano está oferecendo aulas em seis bairros da Grande Vitória, objetivo é contribuir para que se possam quebrar as barreiras para ingresso de jovens trabalhadores, negros, da periferia ao ensino superior, construindo estes espaços de ensino e aprendizado em localidades das periferias e junto às comunidades.

“Costumamos falar que é preciso escancarar os muros da Universidade para o povo negro, mulheres, LGBT's e toda a classe trabalhadora”, diz José Anezio Fernandes, do cursinho Quilombo Sim, que atua em Feu Rosa, na Serra.

O grande trunfo, porém, é justamente o fato de estes projetos irem muito além da aprovação no vestibular. É esse algo a mais que os diferenciam de outros tipos de cursinhos, sejam os tradicionais ou alternativos. Os tradicionais, que a população está acostumada a ver nas propagandas, são empreendimentos empresariais, que lucram com o pagamento de mensalidades e se mostram geralmente bastante obstinados nos números de aprovação, que servirão para a propaganda do próximo ano.

Diante disso, os cursinhos alternativos surgiram para tentar facilitar o acesso de estudantes de origem popular que não tinham condições de pagar mensalidades tão altas dos preparatórios privados, criados geralmente por meio de vínculos com universidades e ou até a entidades governamentais. No Espírito Santo, um exemplo notável é o Projeto Universidade Para Todos (PUPT), fundado em 1996, que preparou inúmeras pessoas que conseguiram ingressar na universidade, mesmo antes da existência de cotas e do Pró-Uni. Outro exemplo mais recente é a criação de um curso Pré-Enem oferecido pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu).

Mas qual a diferença, então?

Cloves Alexandre de Castro, que escreveu uma tese de doutorado pela Unicamp sobre a experiência dos cursinhos populares, ajuda a entender o que faz deles singulares. Surgem tendo como gênese justamente os cursinhos alternativos, o movimento estudantil e as experiências de organização popular nas periferias das grandes cidades.

Nessa fusão, em contato com o pensamento crítico e com as demandas da população de territórios periféricos, concebe a experiência para muito além do exame vestibular. 

“Partimos da constatação de que não há lugar para todas as pessoas na universidade. Então, a educação que recebem não pode ser só para ingressar no ensino superior, tem que ser para a vida, uma formação humana. Se a pessoa passar o ano inteiro estudando só para isso e não passar, pode ser muito frustrante”, avalia Ester Vaz, integrante da coordenação do Cursinho Popular Risoflora, em Maria Ortiz, Vitória.

Ela destaca que a equipe pedagógica costuma orientar o estudante também para outras possibilidades e oportunidades, informando não só sobre a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mas o Sisu, que possibilita estudar em outros estados, ou Prouni, que oferece bolsas em faculdades particulares.

A pesquisa de Cloves considera que se os cursinhos alternativos geralmente partiam do entendimento de que a ausência de classes populares nas universidades se dá devido à baixa qualidade do ensino público, sendo assim necessário oferecer suporte para que possam competir com os alunos da escola privada. Já os cursinhos populares começam a apontar também a baixa oferta de vagas nas universidades públicas e lutam inclusive pelo fim do vestibular e pelo debate sobre a necessidade de livre acesso ao ensino superior no país. 

Para um cursinho privado ou alternativo, perder uma aula para ir a manifestações políticas ou atividades pedagógicas poderia ser considerado não recomendável. Para um cursinho popular, não. Estudar e lutar são duas coisas que devem caminhar juntas. Não basta resolver seu problema individual, é preciso trabalhar coletivamente para transformar a sociedade e suas estruturas injustas, que impedem que setores da sociedade tenham acesso à experiência universitária, ao conhecimento acadêmico e à formação profissional de qualidade. 

“Não trabalhamos com a lógica da conquista individual, a coletividade é mais do que apenas um princípio de gestão do trabalho no cursinho, é uma visão de mundo”, considera José Anezio, do Quilombo Sim.

Educação popular

Os cursinhos se aproximam dos conceitos de educação popular, das ideias de Paulo Freire, em que se considera que se aprende em todos os espaços e tempos por meio da experiência. Não é um trabalho fácil. Uma tarefa militante mesmo, feita por quem acredita. Um esforço coletivo para permitir sonhos e garantir uma educação baseada na liberdade.

Professores e coordenadores voluntários, mobilizações para conseguir alimentação, apoio para o transporte, material didático. Conseguir um lugar para as aulas, sejam escolas públicas, associações comunitárias ou organizações não governamentais. Tudo para oferecer aulas gratuitas, geralmente aos sábados, pois muitos dos alunos também trabalham durante a semana. 

“A perspectiva é de estar nas comunidades e construir coletivamente com estudantes e professores essa luta. Não somos uma prestação de serviço, estamos construindo uma estratégia de luta que passa pela ação direta de preparação desses jovens trabalhadores para o Enem”, explica Lula Rocha. Muitos cursinhos ainda realizam atividades e eventos culturais e políticos extra-classe.

Há uma transformação significativa também na estrutura de organização do processo educativo, que se dá de forma mais horizontal, de contato direito, com coordenações mais abertas e dialógicas, rompendo as hierarquias do ensino tradicional.

Ex-estudante do Risoflora, Nathasha Dambrózio, moradora de Maria Ortiz, passou na Ufes mas não deixou o cursinho. Hoje atua na coordenação e em breve deve começar também a dar aulas. “No cursinho amadureci bastante minhas ideias e me apaixonei pela educação popular. Antes estudei numa escola técnica que era bem centralizada, com regras rígidas, não podíamos fazer quase nada. Aqui temos uma liberdade que nos permite inclusive aprender mais”, conta ela, destacando a relação de amizade entre alunos e professores, sendo que muitos destes a ajudaram com orientações quando ela entrou na Ufes, pois estudam ou estudaram lá.

E vale lembrar que a luta dos estudantes de periferia não acaba com o ingresso nas universidades. Não encontraram nelas paraísos idílicos, mas sim instituições que trazem em si toda carga de classismos, racismos e outros ismos de uma sociedade construída com base na desigualdade e preconceitos sociais, raciais e de gênero.

Ester considera que é preciso “deixar o solo da universidade fértil” para os estudantes de origem popular que virão, pois são muitas dificuldades para terminar os cursos. Muitos precisam trabalhar, as condições de auxílio e permanência muitas vezes estão aquém das necessidades dos estudantes de baixa renda. Mais uma vez, a individualidade não basta, é preciso pensar no coletivo. Essa é a potência de estudantes que ingressam no ensino superior tendo passado previamente por uma experiência de organização política e pensamento crítico, seja num cursinho popular ou outro espaço.

Organização e crescimento

O início costuma ser muito difícil, pois é preciso construir e consolidar estruturas físicas, humanas e pedagógicas com pouco ou nenhum recurso. Pioneiro no Estado, o Risoflora costuma apoiar e apresentar sua experiência a cursinhos em formação, como foi o caso do Quilombo Sim e do Travestibular.

Ambos começaram com poucos alunos mas veem a demanda crescer. Quanto mais as pessoas sabem da existência desse tipo de projeto, mais irão procurar. O Risoflora, que começou com pouco mais de 20 alunos, a maioria do bairro, hoje consegue atender até 120.

Outro projeto, a Rede Afirmação, aponta para um crescimento exponencial: de dois núcleos no ano passado, vai passar para seis este ano, quatro em Cariacica, um na Serra e um em Vitória, baseados nos diálogos com as comunidades e lideranças locais. A oferta de 720 no total foi superada pelo número de inscritos.

Lula Rocha, coordenador da Afirmação, acredita que a crise econômica também aumenta a demanda dos jovens que querem fazer um cursinho preparatório mas não têm como arcar com as mensalidades. “Se não houvessem essas iniciativas, provavelmente essas pessoas não estariam estudando”. Outro fator importante é a localização dos cursinhos em áreas periféricas, podendo ajudar a reduzir custos como transporte, além de alguns deles oferecerem apoio na alimentação.

Avaliando o trabalho do ano passado, Lula considera que houve um grande avanço na consolidação dos cursinhos populares como esse tipo de movimento social que luta pela democratização da educação. A tendência, acredita, é fortalecer e ampliar ainda mais durante este ano.

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