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ES reajusta valor pago a instituições que atendem estudantes com deficiência

Verba pública que esvazia PCDs da rede regular de ensino reflete sociedade “capacitista”, critica Douglas Ferrari

Arquivo pessoal

Criticar o financiamento público a instituições privadas especializadas em atendimento a pessoas com deficiência (PCDs) é uma tarefa inglória quando se trata de uma sociedade preconceituosa como a brasileira e, em especial a capixaba. A constatação é do professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Douglas Ferrari, que seguidamente denuncia o “capacitismo” que permeia as entranhas da sociedade e continua empurrando as pessoas com deficiência para fora do convívio comum, em seus “quadrados de arame farpado”, como já metaforizou o acadêmico por ocasião da luta nacional contra o PL 10.502/2020.

No campo da educação, sublinha, essa segregação se reflete nas volumosas transferências de recursos públicos para instituições privadas que realizam o Atendimento Educacional Especializado (AEE) no contraturno escolar, em detrimento de um investimento mais estruturado nas próprias escolas públicas regulares, que também oferecem esse serviço.

A publicação da Portaria nº 8/2024, pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu), nesta quarta-feira (10), trouxe de volta essas percepções sobre como o “capacitismo estrutural” – em alusão ao termo “racismo estrutural” cunhado pelo hoje ministro Silvio Almeida – justifica socialmente a segregação de crianças e adolescentes com deficiência em instituições especializadas, com recurso público, tudo isso em paralelo à luta permanente pela implementação das diretrizes da Educação Inclusiva, que tem, mesmo que lentamente e de forma ainda muito precária, incluído estudantes com deficiência nas escolas regulares, públicas e privadas.

A portaria, assinada pela secretária em exercício Andréa Guzzo Pereira, “reajusta o valor unitário referencial a ser pago mensalmente por aluno em Atendimento Educacional Especializado aos Centros de Atendimentos Educacionais Especializados – CAEEs das Instituições Filantrópicas, para o exercício de 2024 (…) de R$ 563,91 para R$ 618,81”.

As beneficiárias, explica a portaria, são as “instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos para Atendimento Educacional Especializado no contraturno do ensino regular aos alunos das redes estadual e municipais do Estado do Espírito Santo que apresentam deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento”, especificadas, na normativas em três grupos: “as Pestalozzis, as Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAEs e a Associação dos Amigos dos Autistas do Estado do Espírito Santo – AMAES”.

O reajuste, de 9,7%, é praticamente o dobro do que é estimado para a inflação acumulada no país em 2023. Douglas também compara o valor atualizado com um dado de referência capital sobre investimento em educação no país, que é o Valor Aluno Ano Mínimo do Fundeb (VAAF-MIN). Segundo a Portaria Interministerial 6/2023 do MEC/MF, o VAAF-MIN de 2024 será de R$ 5,3 mil, o equivalente a R$ 446,82 mensais – quase 40% menos que o repasse capixaba às instituições filantrópicas.

“Na contramão da inclusão”

Para o pesquisador, esses repasses públicos crescentes são um retrocesso. “Vai na contramão da educação especial com perspectiva inclusiva. Por que as escolas públicas estão tão sucateadas? Porque o dinheiro está sendo drenado para as instituições privadas especializadas”, aponta.

O pior, ressalta, é que nessas instituições, os estudantes fazem um AEE desconectado com a realidade pedagógica que é vivenciada na escola regular onde ele precisa estar, obrigatoriamente matriculado. Quando o contraturno é feito na mesma escola ou ao menos na mesma rede – municipal ou estadual – o AEE é de fato um reforço e um complemento ao conteúdo pedagógico praticado na sala de aula regular, incluindo de fato as PCDs na educação e na sociedade.

Santa Maria de Jetibá, na região serrana capixaba, é um exemplo de sucesso na aplicação correta do dinheiro público e dos princípios da educação inclusiva. Na rede municipal, estudantes com e sem deficiência estudam juntos na sala regular, aprendendo o mesmo conteúdo. No contraturno, o AEE ofertado na mesma escola onde a PCD está matriculada reforça o conteúdo, com técnicas pedagógicas especializadas.

Quando o AEE é feito em instituições filantrópicas, no entanto, ele se esvazia dessa coerência. “O Estado investe em instituições que não realizam atividades pedagógicas de fato, e sim atividades clínicas, de saúde, que são importantes, mas não devem ser financiadas com o dinheiro da educação”, afirma Douglas, tocando em outro ponto polêmico, que é a denúncia continuada de mães de estudantes, que relatam a “venda casada” de serviços de saúde e educação nessas instituições, em que, para terem acesso aos profissionais de saúde, elas se veem obrigadas a matricularem os filhos também no AEE

Quando da denúncia feita em Século Diário, a Federação das Apaes (Feapaes) afirmou desconhecer a existência dessa prática em sua rede e pediu que os casos fossem denunciados, mas os casos se sucedem lamenta Douglas Ferrari. “Se a educação especial está ruim, a saúde está ainda pior. Então a Apae ocupa o lugar do Estado na saúde e as famílias acabam se submetendo a essa venda casada”, observa.

A solução para avançar de fato com a educação inclusiva, pontua, é direcionar o dinheiro público para o AEE da rede pública de educação e fiscalizar a “venda casada” nas instituições. Difícil emplacar essa guinada na gestão pública em uma “sociedade deficiente”, que ainda não aceita conviver com as PCDs. Mas é preciso persistir. O modus operandi atual, lamenta, “enfraquece a educação pública, vai contra a inclusão e é capacitista”.

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