Alinhados ao Fórum Nacional, educadores pedem por atividades pedagógicas somente após quarentena
Entidades ligadas à Educação do Campo no Espírito Santo e no Brasil rejeitam as propostas de atividades pedagógicas não presenciais durante a quarentena necessária à redução da velocidade de contaminação pelo novo coronavírus e conclamam a sociedade civil, no campo e na cidade, a se unirem em torno das reais prioridades em que os poderes públicos devem investir nesse momento de pandemia da Covid-19.
Cartas abertas publicadas na última semana explicam, ponto a ponto, porque as propostas de atividades pedagógicas não presenciais pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), além de conselhos e secretarias estaduais e municipais, “se revela[m] mais do que uma ilusão, e até uma farsa”. “Não é hora de salvar o ano letivo, é hora de salvar vidas!”, aduzem as entidades.
E apresentam propostas que de fato preservam os princípios constitucionais da Educação em seu sentido mais amplo, considerando as distintas realidades dos estudantes das redes públicas e privada.
Em sua nota pública, o Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) ressalta que “o papel das escolas do campo, nesse momento, é de fortalecer ainda mais a relação com as famílias, no sentido de orientá-las quanto aos cuidados necessários para que se protejam, nesse período de pandemia e contribuir para que tenham acesso aos recursos disponibilizados pelo governo. Busca, portanto, difundir informações e conhecimentos contextualizados, que contribuam na preservação da vida”.
Mas que, “infelizmente, observamos que as decisões tomadas na área educacional, tanto na esfera nacional quanto estadual, apontam em outro sentido”, pois “legitimam desde o início do isolamento social a inserção do Ensino à Distância (EAD), em versões improvisadas na forma de ‘ensino remoto’, que segue a lógica do mercado”.
No caso específico do Espírito Santo, expõe, as Atividades Pedagógicas Não Presenciais” (APNPs), traduzidas no Programa EscoLAR, evidenciam “a crescente exploração da força de trabalho dos professores e o aumento da exclusão, inclusive dos estudantes, pois muitos não têm acesso a uma estrutura tecnológica e emocional. Moram em lugares que não têm nem sinal de televisão e muitas famílias não têm sequer condições de acesso a um celular”. Além da grande diferença de perspectiva, as atividades previstas no programa “trazem no seu bojo muitas inconsistências”.
Além da falta de acesso a recursos tecnológicos e humanos, seja por parte das famílias dos estudantes ou dos professores, e mesmo na estrutura das escolas do campo, e obviamente de conteúdo de Educação do Campo no material importado pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu) do estado do Amazonas, o Comeces menciona o fato de o programa transferir para as famílias a responsabilidade pela ausência dos recursos tecnológicos necessários, “haja vista que não apresentam soluções dignas para essa população, senão a quebra do isolamento social e a exposição no deslocamento até a escola para ter acesso aos livros e às atividades impressas”.
Entre tantas outras inconsistências listadas, o Comitê também enfatiza a raiz mercadológica do programa, em confronto com o princípio constitucional da educação como direito. Aspecto que está explícito no Art. 11º, da Portaria 48-R, que instituiu o EscoLAR, em que a Sedu afirma que “poderá fomentar, mediante editais ou outras formas, a produção, por parte dos professores da rede estadual, de objetos digitais educacionais, videoaulas, bem como cursos online”. O Comeces alerta que o artigo abre assim várias possibilidades para apropriação do mercado por meio de fundações, institutos e Organizações Sociais.
Entre as possibilidades de ação durante o período da pandemia, o Comitê propõe que “toda a estrutura do serviço público, inclusive da educação, esteja empenhada na prevenção e controle da pandemia e no cuidado para com as pessoas, cuidado com a vida” para que, assim, “atravessemos de forma tranquila o período de isolamento social e democraticamente ouçam-se as instituições em vista de encontrar a melhor forma de retomada do calendário escolar, resguardados os direitos garantidos em lei”.
O Comitê pede que “o Estado possa incentivar e apoiar a produção de alimentos e as agroindústrias, priorizando as formas de abastecimento local” e que “que nenhum educador tenha o seu contrato de trabalho cessado neste momento de pandemia, prezando pela humanidade nas relações de trabalho, nesse momento histórico”.
“Precisamos passar por esse período revisando conceitos e práticas, ressignificando nosso modo de vida e, acima de tudo, cuidando dos mais pobres e não aprofundando as desigualdades”, roga o Comeces.
Adiamento do Enem e outras avaliações
Na mesma linha, a “Carta do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), Articulações, Comitês e Fóruns Estaduais de Educação do Campo e Apoiadores/as Direito à Educação em tempos de pandemia” exalta que “Defender a Vida é mais do que reorganizar o calendário escolar”.
Após sólida argumentação contrária às atividades pedagógicas não presenciais defendidas pelo CNE, o Fórum e demais organizações signatárias da Carta propõem, em primeiro lugar, o adiamento do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e de todos os exames nacionais e vestibulares previstos para este ano letivo.
Entre outras proposições, destacam também a “garantia de emprego e salário dos profissionais da educação das redes pública e privada”; a “suspensão de despejos e remoções que servem tão somente para aumentar a vulnerabilidade dos povos tradicionais e camponeses; e a “utilização do fundo público e da estrutura do Estado para investir em ciência e tecnologia, fortalecer as universidades públicas e instituições de pesquisa e ampliar o sistema público de saúde”.
Superada a pandemia, defendem as organizações, “com o encerramento das medidas de distanciamento social, será o momento de construir e definir coletivamente caminhos para a continuidade da vida e para os rumos da política educacional no país. Nesse cenário, o uso das tecnologias da informação e comunicação contribui para a manutenção de vínculos entre os sujeitos e não substitui as práticas pedagógicas presenciais nas escolas”.
“A pandemia não é democrática”, enfatizam o Fonec e parceiros. “Ela não afeta todas as pessoas da mesma maneira. Povos, grupos ou seguimentos sociais mais vulneráveis serão mais gravemente atingidos. Esses seguimentos estão representados pelas pessoas que vivem em situação de pobreza extrema, na informalidade ou com contratos temporários e precarizados de trabalho; idosos, população em situação de rua, em privação de liberdade, refugiados, povos indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, assentados e acampados que vivem da agricultura familiar, dentre outros que historicamente recebem pouca atenção do poder público. Os impactos da pandemia revelam um quadro dramático em escala global, assinalando no Brasil nosso ingresso no período mais crítico, de duração e consequências ainda imprevisíveis”, acentuam.
Ante este cenário, conclamam, “só há uma única e incontornável tarefa na ordem do dia: a defesa da vida em condições dignas para sua existência!”
Nesse sentido, afirmam, “o direito fundamental à educação, subordinando-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, deve, enquanto durar o estado de calamidade pública, ser totalmente exercido e exercitado para defesa da vida de estudantes, professores e seus respectivos familiares e à sociedade em geral, sua legítima titular”.
“As evidentes desigualdades sociais que marcam a vida de grande parte dos estudantes da Escola Pública brasileira são evidenciadas neste contexto de isolamento social e tornam-se, portanto, o grande impedimento legal de quaisquer orientações que demarquem a continuidade do calendário escolar”, reafirmam.
Também mencionando os interesses de mercantilização da Educação por parte de empresas, fundações, institutos e OSs, ávidos por lucrar ainda mais durante a pandemia, a carta do Fonec ressalta que em muitos estados abre-se a “possibilidade de contratações de serviços, compra e aquisição de insumos técnicos e tecnológicos com dispensa ou inexigibilidade de licitação, o que se ajusta plenamente aos interesses privatistas, a pretexto de enfrentar os desafios impostos pela pandemia, permitindo a drenagem criminosa de recursos públicos para o setor privado que domina essas estratégias tecnológicas de ensino, sem que os objetivos pretendidos sejam nem de longe alcançados”, abordando um aspecto já denunciado por educadores do Espírito Santo, ao criticarem o gasto de mais de R$ 1 milhão pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu) com contratação, por 30 dias, de canais de TV aberta para transmissão do conteúdo disponibilizado pelo Amazonas.
A medida, enfatizam as organizações, está “na contramão do que outras nações mundo afora vêm efetivando, cujos estados têm lançado mão de volumosos recursos públicos para viabilizar as medidas de isolamento social com garantia dos meios indispensáveis à manutenção dos empregos, da renda e da saúde pública”.
“Os recursos públicos da educação brasileira devem ser mobilizados para investimento na pesquisa científica de remédios, vacinas e insumos médicos no combate à pandemia, na remuneração de pesquisadores e bolsistas. Deve ser pesadamente mobilizado para garantia da merenda escolar de qualidade, pela continuidade do repasse dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar pela União a estados e municípios, para a sua aquisição enquanto as escolas estiverem sem funcionamento presencial durante a pandemia, conforme Projeto de Lei 786/20 no Senado Federal”, asseveram as organizações signatárias da Carta.
Nesse momento, concluem, “o Fonec, articulações, comitês e fóruns estaduais de Educação do Campo e parceiros/as e apoiadores/as que subscrevem este documento clamam aos estados e municípios que tomem de volta a autonomia constitucionalmente assegurada, para que de posse dela, possam desenhar ações que deem suporte às famílias dos milhares de estudantes que necessitam da presença qualificada e humana da escola; retomem e garantam que a escola exerça sua função social precípua nesse momento de vastas incertezas e amplo sofrimento – a formação humana; que, de posse dessa autonomia, considerando as especificidades de seus municípios e comunidades, planejem com coerência e justiça, seus calendários escolares após o período de isolamento social”.