Talvez tão ou mais grave que a evasão escolar que acomete os estudantes capixabas mais socialmente vulneráveis durante a pandemia de Covid-19, seja a evasão da objetividade nas respostas mecanicamente repetidas pelos gestores da Saúde e da Educação do governo do Estado quando questionados sobre os investimentos feitos na preparação das escolas para o cumprimento dos protocolos de biossegurança estabelecidos para o retorno presencial nesses poucos dias letivos que restam no ano de 2020.
A ferida ficou exposta mais uma vez durante a audiência pública virtual realizada nesta quinta-feira (8) pela Frente Parlamentar em Defesa do Cumprimento dos Planos Nacional e Estadual de Educação, sob mediação dos deputados Sergio Majeski (PSB) e Iriny Lopes (PT), presidente e secretária-executiva da Frente, respectivamente.
Presentes no debate, estiveram o secretário e o subsecretário de Vigilância em Saúde da Secretaria da Saúde (Sesa), Nésio Fernandes e Luiz Carlos Reblin; o coordenador de Educação em Tempo Integral da Secretaria de Estado da Educação (Sedu), Marcelo Lema Del Rio Martins, substituindo o secretário Vitor de Angelo; a secretária-geral da Gestão Provisória da União dos Estudantes Secundaristas do Espírito Santo (Ueses), Kaliana Tolentino Lenzi Soares; o secretário-geral da Associação de Pais de Alunos do Espírito Santo (Assopaes), Aguiberto Oliveira de Lima; o representante do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública (Sindiupes) Ildebrando Paranhos; e a representante do Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) Maria do Carmo Paoliello.
Durante o debate, os representantes da sociedade civil pediram, cada um à sua maneira, para que o governo do Estado reveja a posição de autorizar as aulas presenciais em 2020 nas redes estadual, municipais e privada, e que se permita dialogar com os diversos segmentos da comunidade escolar capixaba que tem sido, sistematicamente, ignorados em seus pleitos nos últimos sete meses.
Transporte e testagem
A secretária da Ueses, Kalina Toletino, ressaltou também a preocupação com o transporte público, utilizado por muitos estudantes, especialmente quando o Estado autorizou o transporte de passageiros em pé, bem como as divergências sobre a efetiva testagem de todos os profissionais de educação.
“A gente sabe que não serão testados 100% dos trabalhadores e entende que é necessário testar também todos os estudantes”, disse, perguntando também sobre a efetividade pedagógica de retomar aulas com apenas 40 dias letivos até dezembro.
Especificidades do campo
Carminha Paolielo, representantes do Comeces, apresentou os principais resultados obtidos com a enquete feita em setembro pelo comitê com estudantes, familiares e profissionais da educação do campo.
A avaliação geral da comunidade escolar foi que houve baixo aproveitamento das aulas virtuais e, por isso, há o desejo do retorno presencial, mas que a prioridade é a vida e a saúde. “O medo está expresso em todos os segmentos que foram ouvidos. No Plano de Retorno da Sedu/Sesa, há elementos que não são compatíveis com a realidade que vivem as escolas do campo”, salientou.
Carminha descreveu algumas especificidades das escolas do campo, especialmente as menores, que são a maioria, onde as professoras estão tendo que assumir todas as responsabilidades de preparação das aulas, dos alimentos e da higienização, visto que são as únicas profissionais contratadas nessas unidades. “Escolas de pequeno porte não têm conselhos escolares, o governo do Estado anterior eliminou os conselhos de escolas com menos de 100 estudantes, que estão agora vinculadas a escolas maiores em outras comunidades. Isso dificulta o recebimento de recursos repassados pelo Estado para custeio das medidas de controle sanitário”, descreveu.
“Uma parcela significativa da população capixaba está sendo seriamente prejudicada simplesmente por morar no campo e ela precisa ser olhada no seu particular, com suas demandas específicas”, rogou.
Desgaste
Pelo Sindiupes, Ildebrando Paranhos afirmou que “não há como recuperar o conteúdo do ano letivo de 2020 nesses poucos dias de aulas alternadas”, com o agravante de que “o professor não foi treinado para trabalhar esse conteúdo uma semana presencial e outra online”.
“Há uma insegurança no campo pedagógico e também no campo da saúde. Há um grande medo. Nosso pedido como Sindiupes, é que o Estado compreenda que esse desgaste físico e emocional é desnecessário neste final de ano”, suplicou, mencionando a aprovação, pelo Conselho Nacional de Educação, de junção dos conteúdos de 2020 e 2021. “Podemos ter esse final de ano para ter um alinhamento e planejar com mais tranquilidade nossas atividades”, pediu, informando a existência de ações judiciais nesse sentido movidas pelo sindicato e a decisão já tomada por mais de 50 prefeituras em manter apenas as aulas online em 2020.
O secretário-geral da Assopaes, Aguiberto Oliveira de Lima, também mencionou o acionamento da Justiça feito pela associação, cujo mandado de segurança só foi julgado após 100 dias pelo desembargador Adalto Tristão, que alegou desconhecer o objeto da ação, decorrido o prazo da representação do mandado, “o que indica ausência de imparcialidade nos tribunais brasileiros, particularmente no Espírito Santo”, repudiou.
Penduricalhos
Aguiberto criticou o termo de compromisso para que os pais garantam que os filhos irão acompanhar as aulas remotas. “Com que computador? Com que sinal de internet?”, questionou, criticando também o termo que está sendo exigido dos pais de alunos de escolas privadas, para que informem se os filhos apresentaram sintomas de Covid-19 ou tiveram contato com algum sintomático. “A gente sabe que a maioria das pessoas nessa faixa etária é assintomática. Não ter sintomas não quer dizer que não está infectado”, expôs. “O governo cria o protocolo e depois inventa penduricalhos adicionais pra transferir no público e no privado a responsabilidade para as famílias desses alunos do sistema público e privado”.
“Não estamos aqui com pé no toco dizendo: não pode retornar em momento nenhum. É preciso adequar-se à realidade com responsabilidade, com respaldo científico e não com base no ‘deixa morrer pra gente ver o que faz'”, disse.
Calendário 2020-2021
Da parte da Sesa e da Sedu, os gestores repetiram os argumentos que vêm utilizando em seus pronunciamentos, coletivas e lives, de que o retorno é necessário para atender à classe trabalhadora, que não está tendo com quem deixar seus filhos, diferentemente da classe média, e de que há “desonestidade intelectual” em discordar com a decisão do governo, pois os números da pandemia apontam para uma redução consolidada dos índices de transmissão, da curva de óbitos e das internações hospitalares, sem, no entanto, reconhecer que estão ignorando o fato do
Espírito Santo atender apenas a dois dos sete indicadores epidemiológicos recomendados pela Fiocruz para o retorno minimamente seguro das aulas presenciais no país.
O representante da Sedu acrescentou ainda que “desde julho, quando voltou a contar as atividades não presenciais como dia letivo, nós temos um planejamento em relação ao calendário 2021 como sendo complementar ao 2020”, sendo por isso imprescindível que as aulas presenciais retornem em outubro.
Encaminhamentos
Acompanhando as manifestações da sociedade civil, os encaminhamentos finais da audiência foram no sentido de pedir diálogo e suspensão da autorização para reabertura das escolas.
“Pedimos ao secretário de Saúde e ao representante da Sedu que levem ao governador Renato Casagrande nosso pedido para reverter a decisão do retorno das aulas presenciais, aproveitando esses últimos 40 dias letivos para que estabeleça um novo diálogo com os pais, entidades e estudantes para melhor redefinir os protocolos para o ano que vem, considerando, inclusive, a resolução do Conselho Nacional de Educação publicada esta semana que permite o ensino remoto até dezembro de 2021, a unificação dos anos 2020-2021, e a não reprovação de estudantes, de forma a evitar a evasão escolar”, declarou Iriny.
Sergio Majeski, em suas considerações finais, reforçou os pedidos e retrucou a fala do secretário de Saúde de que há “desonestidade intelectual” por parte de quem discorda da decisão do Estado. “Discordar de um ponto de vista não pode ser tomado como desonestidade intelectual, é até deselegante dizer isso. Se há desonestidade intelectual em ser contra o retorno das aulas presenciais, então nós temos uma quantidade enorme de desonestos intelectuais na Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], na OMS [Organização Mundial de Saúde], em vários órgãos de pesquisa, infectologia e epidemiologia”, afirmou.
O presidente da Frente Parlamentar também cobrou resposta do governo para o projeto de lei que prevê apoio a professores para compra de equipamentos para as aulas virtuais, como celulares e computadores. “Nesses sete meses, nós teríamos que ter preparado as escolas e professores em termos tecnológicos. E não foi feito absolutamente nada. O governo ficou de apresentar uma contraproposta e até agora nenhuma resposta”, relatou, salientando ainda a necessidade de identificar e resgatar os alunos que não estão acompanhando as aulas, muitos deles, possivelmente, exatamente por falta de acesso à tecnologia e outras condições de estudo dentro de casa.
“Eu não tenho expectativa que eu vá com qualquer tipo de argumento mudar o posicionamento do governo, mas continuo com as mesmas questões. Há questões muito sérias envolvidas em tudo isso e não há simplicidade nenhuma em lidar com isso nas escolas, muito pelo contrário, há uma complexidade imensa”, disse Majeski.