As escolas públicas não podem exigir das famílias dos estudantes que comprem materiais escolares ou vestuário para que os mesmos tenham acesso às aulas. No entanto, isso ocorre constantemente, mas as denúncias muitas vezes não são feitas por medo de represália e mais constrangimento às crianças e adolescentes.
Neste início de 2023, ao menos duas escolas municipais de Colatina, no noroeste do Estado, estão incorrendo nessa ilegalidade, conforme denuncia a educadora Conceição Duarte, professora aposentada das redes de Vitória e Serra e ex-gestora de ensino fundamental de Vitória. “É ilegal, não pode exigir”, afirma, com base em ampla legislação federal sobre o assunto, desde a Constituição Federal, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirmam o dever do Estado de “promover o acesso, a permanência e a progressão dos alunos”.
“É uma responsabilidade do poder público fornecer esses materiais. Onde está o dinheiro da educação? Se a escola não tem o material, tem que reunir a comunidade, explicar a situação, chamar o vereado, o deputado da região, pedir ajuda, exigir que os recursos cheguem. Se preciso, denunciar ao Ministério Público”, orienta Conceição.
“A escola pública tem que ser igualitária. Tem que ofertar. Se alguma família preferir comprar, tudo bem, mas tem que ofertar para todos”, afirma. A negação desse direito, explica, é uma das razões da evasão escolar, pois não conseguindo estar “de igual para igual com seus pares”, expõe a educadora, muitos estudantes mais pobres acabam ficando constrangidos ou mesmo impedidos de participar das aulas.
Em suas redes sociais, a educadora expôs lista de materiais exigidos por duas unidades de Colatina: as Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental (EMEIEFs) Germano Naumann e São Marcos, ambas em bairros periféricos da cidade.
Entre os itens exigidos nas listas, constam até revistas em quadrinhos, garrafa de água e estojo específico, além de ser exigido o uso de tênis pelos estudantes. Nas observações, há ainda de que “durante o ano, de acordo com a necessidade, serão solicitados outros materiais”, que “a família tem a responsabilidade de observar a necessidade de reposição de materiais que acabam no decorrer do ano” e que “é obrigatório o uso de uniforme desde o primeiro dia de aula”. Diz ainda que “a ausência de alguns desses itens comprometerá a participação nas atividades” e que “não é permitido o empréstimo de materiais entre os alunos”. Uma delas ainda exige que tudo seja entregue na escola antes do início das aulas, no dia dois de fevereiro.
“Eu entrei em contato com a Secretaria de Educação em Colatina assim que soube, mas estava em trânsito e a informação que recebi é de que a secretaria orienta as escolas a não fazer isso. Mas não é só orientar! Precisa fiscalizar, exigir que seja cumprido. O expediente na sexta-feira [27] se encerrou ao meio-dia, então na segunda feira [30] vou voltar a cobrar. Quero ver as providências sendo tomadas. Tem que sair uma nota da secretaria muito clara sobre a ilegalidade disso, e um trabalho de fiscalização das escolas e de orientação dos pais, principalmente as famílias de baixa renda. Essas duas escolas são de bairros periféricas, onde as pessoas têm renda de um salário mínimo, muitas vezes com mais de um filho na escola”, conta.
“O que o sindicato está fazendo? O que as instituições estão fazendo? Outros educadores marcaram o Ministério Público nas redes sociais. Mas sabemos que em 2022 foi feita denúncia ao MP sobre essa mesma situação e não tivemos qualquer retorno sobre providências que foram tomadas”, lamenta.
Submissão
Conceição acredita que isso pode estar acontecendo em outras cidades do Estado e é taxativa na orientação às famílias e mesmo aos profissionais de Educação: essa exigência é ilegal e deve ser denunciada. O problema, reconhece, é que o medo de represálias acaba silenciando a todos, não só as famílias, que tem perderem a vaga na escola ou terem seus filhos constrangidos, como de professores e diretores. Como há um percentual muito grande de professores em Designação Temporária (DTs), com vínculo muito precário de trabalho, e muitos diretores de escola são cargos comissionados, há um temor generalizado em denunciar irregularidades.
“Não sei se os diretores dessas escolas são cargos comissionados ou se foram eleitos. Isso faz muita diferença. Mas se é indicado, ele fica submetido, subalterno à vontade do poder que o indicou, seja o executivo ou o legislativo. Sendo que o correto é o gestor dar retorno para a comunidade escolar sobre o que acontece na escola”, pontua.
Quando há qualquer problema desse nível, orienta, a escola precisa reunir as famílias, explicar o que está acontecendo. Se um vereador ou deputado recebe a denúncia, tem que ir à escola, buscar a transparência, perguntar quais verbas ela recebeu, o que tem em caixa, se recebeu material ou não o material que é obrigatório da prefeitura, do governo do estado, do MEC”.
A educadora reflete sobre a gravidade da situação, de forma generalizada. “Eu fui professora por mais de 30 anos, fui gestora de ensino fundamental, a gente tinha liberdade para questionar, denunciar. Os pais denunciaram e a equipe ia para a escola, o debate era sério. Em Vitória, nós tínhamos um setor para receber as famílias, atender em suas necessidades, às denúncias”, compara.
A falta de concurso público, a fragilização econômica e social das famílias mais vulneráveis, o enfraquecimento da participação social não na educação, como em outros setores, principalmente nos últimos anos, formam um contexto de retrocesso preocupante, alerta a educadora.
“Meus filhos foram educados em escola públicas, todos têm nível superior e são profissionais realizados. Eu conheço a educação desde que as escolas eram barracões. Essas são conquistas nossas, de nossas lutas, nós comunidades, professores, sindicatos. E hoje você vê os gestores das escolas públicas com atos tão ultrapassados em vez da busca dos direitos das crianças. A secretaria de educação tem obrigação de garantir o direito de permanência dos alunos. Imagina um aluno que não pode comprar esse material? É um constrangimento sério! Imagina a humilhação, ainda sob ameaça de não participar das atividades! O município já deu o uniforme, o tênis? Se não, não pode exigir! Hoje as crianças estão andando descalças nas ruas!”.