Pesquisadora Erineusa Maria da Silva rebate pânico moral sobre educação e gênero
Após a promulgação da lei que proíbe a chamada “doutrinação de ideologia de gênero” nas escolas públicas e privadas de Guarapari, na região metropolitana, de autoria do vereador Luciano Costa (PP), um projeto de lei praticamente idêntico foi apresentado no legislativo de Colatina (noroeste do Estado), por Vitor Lousada (PL), na última semana, sob a justificativa de “proteger ainda mais nossas crianças”. A proposta ainda precisa passar pelas comissões temáticas da Câmara antes de ser levado à votação no plenário.
Para a pesquisadora e coordenadora do Núcleo Interinstitucional de Pesquisa em Gênero e Sexualidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Nupeges-Ufes), Erineusa Maria da Silva, tanto a lei de Guarapari quanto o projeto de Colatina, além de inconstitucionais, utilizam o pânico moral para manipular a opinião pública, especialmente os pais, ao distorcer o conceito de igualdade de gênero e transformá-lo em uma suposta ameaça. “Impedir que a escola fale sobre gênero também é uma forma de doutrinar”, rebate.
Ela ressalta ainda o impacto negativo no combate à violência de gênero e na proteção de populações vulneráveis. “O Espírito Santo tem um número altíssimo de feminicídios, violência contra crianças, adolescentes e a população LGBTQI+. Não discutir isso nas escolas é compactuar com essa violência”, pontua.
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A pesquisadora também desmonta um dos principais argumentos dos defensores da proposta. “Sobre essa fala de proteger as crianças, como se estivessem livrando-as da pedofilia, sabemos que 80% dos assédios e abusos contra crianças e adolescentes não acontecem nas escolas, mas no círculo familiar. Ao contrário do que dizem, a escola denuncia esses casos, e a maioria das denúncias são feitas e identificadas no ambiente escolar”, observa.
Esse tipo de legislação faz parte de um movimento conservador mais amplo, que busca manipular o debate público e restringir avanços em direitos humanos, avalia. “Não surpreende os textos serem idênticos, porque entra ano e sai ano, reaparece esse tipo de projeto. É uma forma de ganhar voto fomentando esse pânico moral, intimidar os professores e manipular os pais”
A pesquisadora traça um paralelo com o movimento “Escola Sem Partido”, que se fortaleceu como agenda política em 2015, ressaltando que ambos fazem parte de uma resistência às ações afirmativas na educação. Para Erineusa, as propostas representam um retrocesso, pois parte da ideia de que os estudantes devem ser tutelados, limitando o desenvolvimento de um pensamento mais crítico. Ela também aponta que setores conservadores veem a liberdade de ensino e aprendizagem como uma ameaça, pois ela permite que os alunos questionem e ampliem sua compreensão sobre a sociedade.
A proposta apresentada em Colatina pelo vereador Vitor Lousada (PL) repete, quase integralmente, o texto aprovado em Guarapari. Ambos os projetos estabelecem punições para escolas que abordem questões de gênero e sexualidade, restringem materiais didáticos e incentivam denúncias contra professores e gestores escolares. Além disso, utilizam o conceito de “doutrinação de ideologia de gênero”, um termo sem respaldo acadêmico ou pedagógico, como destaca a pesquisadora.
A pesquisadora destaca que a escola desempenha um papel fundamental na formação crítica dos alunos e na construção de uma sociedade mais inclusiva. Para ela, quando os educadores estão comprometidos com o desenvolvimento humano em sua totalidade, a educação se torna uma ferramenta essencial para combater a desumanização, a perda de senso crítico e a redução das pessoas a meros objetos.
O Ministério Público Estadual (MPES) afirma que “tomou conhecimento dos fatos e vai analisar o caso para, posteriormente, adotar as providências necessárias
Inconstitucionais
O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre leis semelhantes em outras localidades, declarando sua inconstitucionalidade. Em abril do ano passado, o STF anulou, por unanimidade, uma lei municipal de Nova Gama (GO), que proibia o uso de material didático relacionado à diversidade de gênero, afirmando que tais medidas violam a competência exclusiva da União para legislar sobre educação e os princípios da igualdade de gênero, liberdade de ensino e laicidade do Estado.
Decisões anteriores também reafirmaram que leis que restringem o debate sobre temas de gênero e sexualidade comprometem o direito à educação integral e à proteção da dignidade humana, além de contrariar os objetivos do Plano Nacional de Educação (PNE).
Apesar da promulgação em Guarapari, a lei foi denunciada pela Associação Diversidade, Resistência e Cultura ao Ministério Público do Espírito Santo (MPES) e à Defensoria Pública do Estado. Além disso, foi solicitada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a legislação.
O Ministério Público do Espírito Santo informou que o procedimento para analisar a inconstitucionalidade da Lei Municipal 5.036/2025 está em trâmite, sob o número de Notícia Fato Gampes 2025 0000.4205-08, após representação da Associação de Defesa dos Direitos da Cidadania (ADRC). O MPES esclarece que o procedimento tramita dentro do prazo legal e que, após a coleta de informações imprescindíveis, será realizada a análise da inconstitucionalidade da lei.
Caso seja constatada a inconstitucionalidade, a questão será encaminhada ao Procurador-Geral de Justiça para análise e eventual propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) perante o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
Segundo o secretário executivo da ADRC, Leonardo Brandão, o processo no Ministério Público tem avançado significativamente. A Câmara de Guarapari foi notificada para prestar justificativas, mas as respostas enviadas foram consideradas insuficientes pela Promotoria, que solicitou novos esclarecimentos, também considerados insatisfatórios.
O representante da associação lembra ainda que a própria relatora da Comissão de Redação e Justiça da Câmara, Kamilla Rocha (Mobiliza), já havia apontado a inconstitucionalidade da lei antes mesmo de sua aprovação. No entanto, os vereadores Max Júnior (membro) e Oldair Rossi (presidente) divergiram da relatora e votaram favoravelmente ao projeto, garantindo sua aprovação por dois votos a um.
Na Defensoria Pública, o trâmite também tem avançado, relata. Após uma reunião com o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, foi emitido um parecer que aponta a inconstitucionalidade da norma e encaminhado ao Procurador-Geral da República.
Entidades da sociedade civil reforçaram a ilegalidade da medida e destacaram que a proibição do debate de gênero nas escolas representa um ataque à educação inclusiva e aos direitos fundamentais. Uma nota, assinada pelo Nupeges, fóruns e coletivos de educação e direitos humanos, enfatiza que o texto viola princípios constitucionais e ameaçam a liberdade de ensino e aprendizagem.
Leonardo Brandão afirma que há pelo menos cinco pontos que tornam o texto inconstitucional: a violação de direitos fundamentais, como igualdade e liberdade de expressão; a usurpação de competência, já que a matéria deve ser regulamentada pela União e não por municípios; o retrocesso social, ao restringir direitos já reconhecidos anteriormente; a falta de interesse local, uma vez que o tema ultrapassa a autonomia municipal; e a promoção de discriminação contra a população LGBTQIA+, contrariando a Constituição Federal e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF).