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Iniciativas podem reforçar ‘indústria do autismo’ em Cachoeiro

Gestão de Ferraço e escola privada planejam implantar núcleos para TEA

Evento de anúncio de núcleo de apoio ao TEA em Cachoerio. Foto: Wallace Hull/PMCI

Com uma diferença de poucos dias, dois projetos de implantação de núcleos educacionais de apoio a crianças e jovens com Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram anunciados em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado. Uma delas é da gestão do prefeito Theodorico Ferraço (PP), e a outra, da tradicional escola privada Ciac Raymundo Andrade. Entretanto, mesmo que tais iniciativas sejam bem-intencionadas, há o risco de que contribuam para reforçar o que alguns especialistas chamam de “indústria do autismo”.

Uma das pesquisadoras do assunto é Bruna Lídia Taño, doutora em Educação Especial e professora do curso de Terapia Ocupacional na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Em participação no programa Entrevista do Século, da TV Século, no ano passado, Bruna destacou que há uma rede de interesses crescente no mundo em torno do TEA, e cada vez mais ampla – incluindo desde a venda de produtos com os símbolos do autismo até a criação de políticas públicas segmentadas.

Isso ocorre em meio à multiplicação de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista em pessoas de todas as idades. A pesquisadora da Ufes não questiona a validade dos diagnósticos de TEA em si mesmos, e sim a mobilização da atenção e das políticas públicas para um diagnóstico específico, mesmo que existam outros transtornos que afetam crianças, jovens e adultos.

“O que a gente avalia é que há um crescimento de projetos de lei a partir de 2019 [sobre TEA]. Em 2023, foram 118 projetos de lei tramitando [no Brasil], que são muito semelhantes entre si, mas que funcionam como plataforma eleitoral. Falar em nome do autismo faz ganhar voto. Porque quem vai ser contra a inclusão da pessoa autista? Ninguém”, afirmou Bruna Taño na ocasião, sobre o uso político da pauta.

Isso pode ser aplicado aos casos de Cachoeiro em discussão. São propostas de criação de núcleos de apoio específicos para crianças e jovens com TEA, que deixam em segundo plano demais deficiências (intelectuais ou físicas) e transtornos, além de outros aspectos sociais, emocionais e cognitivos que afetam o desenvolvimento de crianças e jovens.

A criação do novo núcleo de apoio a crianças e adolescentes com TEA da Prefeitura de Cachoeiro foi discutida em um evento realizado nessa sexta-feira (14), no Centro de Manutenção Urbana (CMU), no bairro São Geraldo. Entre os presentes estavam os deputados estaduais Bruno Resende (União) e Allan Ferreira (Podemos), que apoiaram o candidato a prefeito Diego Libardi (Republicanos) em 2024. Bruno é presidente da Comissão de Saúde na Assembleia Legislativa, e Allan tem a temática do TEA como um dos focos de sua atuação política.

Segundo a gestão de Ferraço, os locais para a instalação do novo núcleo estão sendo analisados. Uma das possibilidades é colocá-lo no espaço da Vila Olímpica, que mesmo após mais de uma década do início da construção, não foi concluída. “Assim como fiz com a Apae [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais], será uma questão de honra construir essa unidade para auxiliar nossas crianças que convivem com o Espectro Autista e com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Precisamos enxugar as lágrimas desses pais”, discursou Ferraço

Durante a campanha eleitoral de 2024, o atual prefeito de Cachoeiro prometeu a construção de uma segunda unidade da Apae voltada especificamente para pessoas com TEA.

Escola com problemas na Justiça

No caso do Ciac Raymundo de Andrade, trata-se de um empreendimento privado, mas com implicações públicas importantes. Conforme matéria do jornal ES de Fato do último dia 7 de fevereiro, a direção da escola está criando o Instituto Unitea, para atender crianças e também trabalhar com capacitação de profissionais, pesquisa e eventos educacionais voltados ao TEA.

O novo instituto substituirá a Associação de Proteção e Assistência à Maternidade e à Infância (Apami), mantenedora da escola. Para viabilizar a instituição, deverão ser buscados recursos por meio de subvenção e parcerias com órgãos públicos e privados, além da oferta de serviços mediante pagamento de mensalidades.

Em crise, o Ciac Raymundo Andrade está praticamente sem atividades atualmente. Em abril do ano passado, a escola foi condenada a pagar R$ 100 mil a professores e ex-professores, montante referente a salários não pagos dos meses de setembro, outubro e novembro de 2023, além dos benefícios de descanso semanal remunerado (1/6) e planejamento (15%) dos mesmos meses. A própria direção da escola encara a criação do novo instituto como uma forma de se reerguer – focando, nesse caso, num tema que está em alta.

Mas um ponto importante abordado na sentença que condenou o Ciac a ressarcir seus funcionários e ex-funcionários, diz respeito ao imóvel em que a escola está instalada, no Centro da cidade. O juiz Giovanni Antonio Diniz Guerra chegou a deferir, parcialmente, o pedido para que o espaço fosse utilizado como garantia para o pagamento da dívida, mas foi informado de que se trata de um local que pertence à União.

Esse fato remete ao histórico de transformação do Ciac – que, em suas origens, era uma instituição filantrópica. A Associação de Proteção e Assistência à Maternidade e à Infância (Apami) foi fundada em 1948 por Raymundo de Araújo Andrade, ex-prefeito de Cachoeiro (1959 a 1963) e ex-deputado federal (1963 a 1970), junto a sua esposa, Maria das Victórias.

Inicialmente, a instituição era chamada de “Jardim de Infância” e oferecia educação infantil. O ensino fundamental foi implantado em 1985, segundo o histórico divulgado pela escola, e o ensino médio, em 2010, quando já era chamada há várias décadas de Centro Integrado de Atividades Culturais (Ciac) Raymundo Andrade.

Em 1997, a Procuradoria da União do Espírito Santo entrou com representação contra José Tasso de Andrade – ex-prefeito de Cachoeiro e filho de Raymundo e Maria das Victórias, que depois assumiu a escola – no Tribunal de Contas da União (TCU), alegando mau uso de recursos de três convênios firmados nos anos 1990 com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e ocupação ilegal de terreno pertencente à extinta autarquia Legião Brasileira de Assistência (LBA).

Segundo a Procuradoria, a escola estava cobrando mensalidades compatíveis com as de instituições privadas, o que afrontava o seu próprio estatuto e a finalidade a que se destinava naquele espaço. José Tasso chegou a ser condenado em duas instâncias, mas, em 2012, o Tribunal de Contas da União (TCU) julgou suas contas “regulares com ressalvas”.

A questão do terreno foi resolvida em processo à parte, mas a Justiça considerou que o instrumento utilizado na época (Ação Civil Pública) não era adequado. Com isso, o caso nem chegou a ser analisado no mérito e caiu no esquecimento.

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