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‘Inteligência é capacidade de aprender e se desenvolver. Somos todos inteligentes’

Professor critica fala de Bolsonaro contra estudantes com deficiência. “Reverbera o capacitismo estrutural”

“A fala do presidente é preconceituosa e discriminatória, reverbera o capacitismo estrutural. Classificar as pessoas entre inteligentes e atrasadas é uma visão de retrocesso que entende as pessoas com deficiência como alienadas, excepcionais, como se dizia no passado. É considerar a pessoa com deficiência como um ser que não tem valor, que tem menos valia pra uma produção. A inteligência tem a ver com aprendizagem e desenvolvimento, então todos podem aprender, todos podem se desenvolver, todos somos inteligentes”. 

As ponderações são de Douglas Ferrari, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e membro do Grupo de Trabalho em Educação Especial da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (Anped), ao repercutir a declaração feita na última quarta-feira (6) pelo presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) ao comentar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender liminarmente o Decreto nº 10.502/2020, que instituía a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e ao longo da vida. 


O Decreto procurou restabelecer a figura das chamadas salas e escolas especiais, que recebem estudantes com deficiência que não conseguem se matricular nas escolas comuns, indo frontalmente contra o trabalho feito há três décadas no país pela inserção das pessoas com deficiência (PCD) nas redes regulares de educação e, consequentemente, no mercado de trabalho e na sociedade de forma plena.

Em conversa com seus apoiadores, Bolsonaro disse ser contrário à suspensão feita pelo STF porque a presença de alunos com e sem deficiência na mesma sala de aula “nivela por baixo” e prejudica toda a turma. “O que acontece numa sala de aula: tem um garoto muito bom, você pode colocar na sala com melhores; se tem um garoto muito atrasado, ‘cê’ faz a mesma coisa. O pessoal acha que juntando tudo, vai dar certo. Não, não vai dar certo. A tendência é todo mundo ir na… na esteira daquele de menor inteligência”, disse.

A suspensão liminar do Decreto se deu no âmbito de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590 impetrada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), por meio do deputado Felipe Rigoni. Com relatoria do ministro Dias Tofoli, a votação ficou em nove votos a favor da ADI e dois contra, sendo um destes com ressalvas. O julgamento do mérito ainda não tem data marcada.

Dias Tofoli também é relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 751, movida por outro parlamentar capixaba, o senador Fabiano Contarato (Rede/ES). “As duas ações mostram que a gente precisa não só suspender, mas revogar o decreto”, ressalta Douglas Ferrari.

O decreto, salienta o especialista, fala das “escolas regulares inclusivas”, afirmando subliminarmente que existem escolas regulares que excluem. Depois, complementa, cria 17 centros, um para cada tipo de deficiência, estabelecendo uma segregação absurda, com “cada um em seu quadrado de arame farpado”, metaforiza. “Não é isso. Nós temos que viver em sociedade. Pra satisfazer as necessidades básicas materiais e subjetivas de todas as pessoas, é preciso uma educação igual”, reivindica.

Deficiente é a sociedade que segrega
A criação desses centros reforça um entendimento equivocado de que a deficiência é da pessoa, se apoiando em uma “visão clínica e biológica da deficiência, que culpabiliza as pessoas com deficiência e suas famílias”, explicita.
O movimento empreendido em âmbito mundial, no entanto, e consagrado na Lei Brasileira de Inclusão, que vem da Convenção da Pessoa com Deficiência, é que “a deficiência é da sociedade. É uma questão social, um modelo social de deficiência”, assevera. 
Além de segregador, o decreto de Bolsonaro suspenso pelo STF tem objetivo indubitável de beneficiar diretamente o setor privado, na linha do que o governo federal tentou fazer com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o que foi derrotado no Congresso no final de 2020, sendo mantida a garantia de que o Fundo existe para financiar a educação pública.

“Quando você tem uma ausência do poder público, o único espaço em que se chega é a instituição privada. Então procura-se fazer uma educação pública de modo geral ruim, pra que a iniciativa privada se faça presente”. O alegado “direito de escolha” ofertado às famílias das PCD, é na verdade “um engodo”, denuncia Douglas. “O direito de escolha, quando você não tem condições objetivas para escolher, não é verdadeiro”.

ES dá exemplo com o “professor colaborador”
No Espírito Santo, conta Douglas, a estimativa, com base no Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), é de que haja três mil alunos na rede estadual e cerca de 1,8 mil nas redes municipais da Grande Vitória. 
O nosso maior diferencial positivo é a existência da figura do professor colaborador, que auxilia o professor principal no trabalho dentro da sala de aula comum. Esta, ressalta, é o “locus privilegiado da educação especial”. Somente no contraturno, como complemento, encaixa-se a “sala de recursos”, que podem ser oferecidas na própria escola regular onde o aluno está matriculado, numa escola próxima ou em uma instituição privada especializada.

Mas, mesmo no Espírito Santo, com seus professores colaboradores, Douglas afirma que “ainda estamos longe do ideal”. Afinal, a meta é “uma educação igual para todos”. Por enquanto, o que temos no ensino fundamental é uma educação para todos, mas não de forma igualitária.

“A gente precisa de bons fundamentos pra ter boas práticas, que levem à acessibilidade, por exemplo, que leve o aluno a conhecer o pensamento abstrato das disciplinas, de português, matemática … e que haja um trabalho intersetorial, envolvendo a saúde, a assistência social. Não dá pra desconsiderar a questão clínica, é muito importante, mas que tenha uma interrelação do pedagógico, como prioritário, mas que se relacione com a assistência, com a saúde, com a cultura, com o lazer”.

Nesse sentido, boas formações para professores é essencial. A maioria dos educadores, relata, se forma em instituições privadas e muitos deles em educação à distância. Esse formato “prejudica a qualidade do trabalho desse professor que vai estar na escola, lidando muitas vezes pela primeira vez com a pessoa com deficiência”. Em alguns municípios, conta, são contratados estagiários desses cursos, “que nada mais são do que acompanhantes, babás do aluno”.

No ensino médio a situação é ainda mais deficitária. “Os alunos vão ficando pelo caminho. O ensino médio tem pouca assistência do professor de educação especial, o que dificulta esse aluno chegar na universidade”.

Ainda assim, o trabalho desenvolvido nos últimos trinta anos tem repercutido em um sensível aumento no número de matrículas em faculdades e universidades. “Mas nós temos muito a crescer nessa continuidade: do ensino fundamental pro ensino médio, do ensino médio pra universidade”, roga.

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