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Lições de amor à educação e agricultura no município com mais escolas do campo do ES

‘Se a criança não cresce no meio rural, não volta mais’, afirma professora e contadora de história pomerana

“Se a criança não cresce no meio rural, não vai ter amor à terra, não vai voltar”. A afirmação é de Marineuza Plaster Waiandt, professora aposentada, especialista em Educação do Campo na comunidade de Alto Santa Maria, no interior de Santa Maria de Jetibá (região serrana) e contadora de histórias pomeranas. E resume bem a chave do sucesso do município, que é o campeão em escolas do campo em todo o Estado.

Arquivo pessoal

“É uma política do município. Em nenhum momento, até hoje, foi cogitado fechar escolas do campo. A escola do campo só se fecha se não tem mais nenhum aluno, se a comunidade do entorno desistir”, responde, orgulhosa, sobre como Santa Maria de Jetibá conseguiu atravessar mais de três décadas de sucessivos fechamentos em massa de escolas do campo não só no Espírito Santo, mas em todo o Brasil. 

Diante do questionamento sobre o possível risco que as escolas multisseriadas, com Pedagogia da Alternância, podem sofrer com a imposição do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES), atual vetor de uma nova onda de fechamentos, Marineuza é categórica em afastar a possibilidade. 

“Desde 2013, quando me aposentei, já era comentada essa história de que haveria separação de redes, que a municipal assumiria uma parte e a estadual a outra. Não acho ruim que isso aconteça, precisa apenas planejar. Precisa haver toda uma adaptação de prédio, de transporte, de aluno. Vai dar trabalho, mas são arranjos que têm que ser feitos. Agora, fechamento de escola, não vai ter não”, sentencia, com segurança. 

Marineuza é a personagem central e capa do livro Uma professora pomerana e sua comunidade, baseado na dissertação de mestrado da educadora Edineia Koeler, em 2016. “Não se pode dizer que a inserção da professora Marineuza foi um divisor de águas nessa história, porque a luta pela educação na comunidade é anterior a ela, e continuou depois de sua saída. Contudo, sua presença na comunidade representou a consolidação de uma luta coletiva por um direto continuamente negado aos pomeranos: a educação escolar diferenciada”, afirma a autora, agora doutora em Educação. 

Ao longo do estudo, Edineia discorre sobre a luta da comunidade de Alto Santa Maria para retomar uma educação alinhada com os princípios pomeranos de amor à terra e à agricultura familiar e de preservação de sua cultura e tradições. Uma das fotos (abaixo) que melhor representa esse sentimento mostra moradores, junto com crianças, amassando o barro para fechar as paredes de estuque da primeira sala de aula onde funcionaria a 5ª série, em 1994.

Reprodução

Em 2022, Marineuza também comenta sobre a foto, fazendo associação a “uma característica do povo pomerano”. A abertura de uma escola, sublinha, foi a primeira atitude coletiva que os pomeranos tomaram quando chegaram no Brasil, a partir de 1859. “Primeiro a escola, depois o cemitério, depois a igreja”, explana. 

A professora e contadora de história também fala de um passado ainda mais distante, em 1978, quando Santa Maria ainda era um distrito de Santa Leopoldina. “Tinha quarenta e poucas escolas pequenas na zona rural, mas 23 estavam fechadas por falta de professor. Em 1979, por um movimento das comunidades pomeranas, houve reabertura dessas escolas. Algumas já eram municipais, mas a grande maioria era da rede estadual. Daí, na década de 1990, houve um movimento de separar as redes [como o de hoje, via TAG do TCE]. O município de Santa Maria então assumiu essas escolas pequenas todas! E depois houve um esforço para dar formação aos professores. Eu mesma me formei no magistério trabalhando, depois fiz faculdade com apoio do município, para o transporte. Até hoje é assim. Essas escolas estão continuam abertas, funcionando, sendo reformadas e melhoradas, recebendo professores de áreas diversas, como educação física, artes, cultura pomerana, tem equipe específica de merenda, de faxina”, descreve. 

Em 2016, quando da publicação do livro de Edineia, o mapa do município indicava a existência de sete escolas estaduais, 41 municipais unidocentes e pluridocentes e educação infantil (sendo cinco paralisadas); 12 centros de educação enfantil e creches municipais; e uma escola de ensino fundamental particular, a Cooperação (Centro).

Pedagogia da Alternância

Via de regra, as crianças concluem o ensino fundamental nas pequenas escolas do campo, com Pedagogia da Alternância, mais próxima de sua casa. Depois, vão para escolas-polo de ensino médio, também na zona rural, incluindo campus do Instituto Federal do Estado (Ifes) e escolas profissionalizantes especializadas em agricultura, como a Escola Família Agrícola (EFA) São João do Garrafão e a EEEFM Fazenda Emilio Schroeder, que tem ênfase na agricultura orgânica. 

“A Emilio Schroeder é a única escola estadual do município a trabalhar alternância semanal. As famílias são visitadas para dialogar, contar como está o filho na escola, fazer sugestões…”, conta. “Alto Santa Maria não consegue se pensar sem a Emilio Schroeder”, acrescenta Marineuza, destacando que a área da escola é de dez hectares, onde são feitas práticas e experiências de agricultura orgânica, e é coadministrada por uma associação de pais e alunos. 

“O Estado várias vezes tentou fechar a Emilio Schroeder. Mas numa dessas, quando queria fechar o fundamental, a comunidade pediu para ampliar e ter o fundamental completo. Daí o Estado dizia que não tinha prédio, então a comunidade construiu o prédio. ‘Agora que temos o prédio, queremos os professores!’. Foram lutas e mais lutas de comunidade. Nos primeiros anos, não recebia alimentação suficiente para manter o café da manhã e o almoço, então a comunidade se organizava para preparar os alimentos”, narra, com a musicalidade pomerana única que leva qualquer ouvinte a se reportar ao universo quase mágico – para os “de fora” – da vida feliz na roça e imersa nas tradições preservadas, resgatadas e ressignificadas das gerações que se sucedem no município mais pomerano do Brasil. 

“É desgastante tanta luta, mas quando consegue a vitória, é muito significante”, aduz, utilizando um termo comum à pedagogia de Paulo Freire. “O que mais move a comunidade, a escola, pais e professores, é o fato de que o ensino só se torna significante se ele é concreto. Eu não posso partir do abstrato, tenho que partir do concreto, daquilo que eu tenho na realidade daquelas famílias. A Emilio Schroeder fez isso, como Paulo Freire disse, que, para aprender a ler, você primeiro tem que aprender a ler o que você é e o que você vive. Você só pode mudar o meio se conhece ele”. 

Formação específica

Em paralelo à história de resistência e avanços da política municipal de educação do campo, os moradores de Santa Maria ainda convivem com uma política estadual de “corte de gastos a todo custo, que leva ao esfacelamento das escolas dentro delas mesmas”, sublinha Edineia em seu livro. 

“A Pedagogia da Alternância dentro da rede estadual passa por uma situação delicada. Diante do incisivo corte de gastos na educação, vem sendo alvo de constantes ataques por parte do Estado, que vê as suas ferramentas como despesas extras que poderiam ser evitados”, denuncia.

Assim, hoje, a origem social e cultural de professores não é mais tão importante como no passado, quando a chegada de professoras não pomeranas na Emilio Schroeder causou um choque cultural que quase inviabilizou a escola, já que elas não se adaptavam à comida, aos sanitários e aos costumes do “povo da roça”, e tampouco a comunidade se esforçava para acolhê-las. 

“A escola anseia por um edital de contratação de professores específicos, que contemplem profissionais com formação em Educação do Campo. Ou que concordem em fazer formação em serviço enquanto atuam na escola”, acentua a autora. “Nós não precisamos de professores que têm medo de sujar as mãos na roça”, destaca, citando uma fala do agricultor orgânico Daniel Plaster, ao avaliar a situação das aulas práticas da escola, um dos entrevistados para a dissertação acadêmica. 

Histórias orais

Marineuza conta que, mesmo aposentada, mantém o vínculo com a educação. Para Edineia, essa postura é exemplar para ilustrar um perfil de educador que, “apesar de todas as dificuldades, enfrentam os problemas e se arriscam em uma iniciativa individual [e] conseguem [assim] promover a educação para a comunidade”.

Arquivo pessoal

Ao abrir sua própria casa (Waiands Huus) para a escola, observa, “seu modo de fazer educação parte agora da comunidade, retribuindo o voto de confiança que recebeu ao iniciar sua carreira”.

Marineuza recebe estudantes em casa e também vai até as escolas ministrar palestras, onde conta histórias orais em pomerano, uma prática vital para manter viva sua cultura tradicional, principal responsável pelo grande sucesso de sua educação do campo, exemplo para todo o Espírito Santo e o Brasil. “O povo pomerano educa os seus filhos através de histórias. Os pais nunca vão chegar para o filho, apontar o dedo e dizer: ‘é isso, assim, assim’. O povo pomerano senta com seu filho e conta uma história e através da história passa o que é certo e errado, passa a sabedoria”, ensina.

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