Em Sooretama, mais de 100 alunos de unidades rurais foram obrigados a se matricular no meio urbano
“Os argumentos alegados pelo Estado se restringem à falta de estrutura física e organizacional das referidas e, sobretudo, à impossibilidade de cumprimento dos protocolos sanitários para o combate à Covid-19”, aponta o MPES na ação. A transferência seria para EEEF Regina Bolsanello Fornazier e EEEF Alegre, duas escolas estaduais que estariam para ser municipalizadas, o que poderia implicar o fechamento das escolas do campo.
O órgão ministerial aponta que há pontos que precisam ser esclarecidos antes que haja transferência dos alunos para escola urbana. Uma questão é o quantitativo de alunos, sendo que há 22 estudantes em Joeirama, 27 em Domingos Correia, 50 em Córrego do Rodrigues e 15 em Córrego Patioba. Com exceção do último caso, o MP avalia a quantidade de alunos como razoável para manter as unidade de ensino funcionando.
Outro ponto se refere à idade dos alunos, pois a maioria é composta por alunos entre 6 e 10 anos, que se transportam a pé ou em “transporte escolar adaptado à realidade local”, em trajetos curtos em que são acompanhados por pais ou responsáveis. Para chegar nas escolas urbanas, a maioria com mais de 15 km de distância das comunidades, os percursos poderiam durar até 1 hora, o que causaria cansaço físico e mental às crianças.
“Ademais, há um consenso quanto à satisfação dos alunos e professores destas escolas do campo em ali estarem, sendo parte da comunidade, o que, segundo relatos, reflete-se nos níveis de qualidade do ensino”, escreveu o MPES a partir do relatos dos pais e responsáveis que foram surpreendidos por uma portaria publicada pelo município no último dia 7 de dezembro sem mais explicações, que transferia automaticamente os alunos do campo para escolas urbanas.
Além disso, “não se olvida dos valores históricos e culturais dos referidos estabelecimentos de ensino para o município de Sooretama, muito bem pontuado pelos pais e pela comunidade, que, em sua etiologia, tal como os demais municípios da região, dependia exclusivamente das atividades rurais, que ainda emergem como mola motriz da economia nacional, de modo que muitos dos pioneiros desta cidade ali estudara, assim como seus filhos e netos, permitindo, portanto, o sucesso e o progresso”, relata a ação.
Levando em conta que a pandemia já tem 1 ano e 9 meses de duração e as medidas preventivas e sanitárias foram estabelecidas desde meados de 2020, o juiz da Vara de Infância e Juventude de Linhares, responsável por julgar o caso, considerou que o Poder Executivo dispôs de tempo suficiente para implementação das medidas devidas e somente agora, às vésperas do retorno às aulas presenciais, justificou a necessidade de remanejamento dos alunos. O mesmo vale para a alegação de problemas de infraestrutura e falta de servidores para garantir os protocolos.
Como medida cautelar, o juizado determinou a suspensão da portaria municipal que excluía as matrículas nas escolas do campo, solicitando abertura das mesmas pelo Estado para o ano letivo de 2022 nos cinco colégios, e solicitou à prefeitura e ao governo estadual documentos referentes à municipalização das escolas Regina Bolsanello Fornazier e Alegre e documentos e pareceres sobre a extinção das unidades de ensino rurais.
Alertas das comunidades
Em julho deste ano, as comunidades rurais já tinham se manifestado contra o projeto de municipalização das escolas que poderia implicar a extinção dos colégios rurais. “A gente percebe que eles estão inventando desculpa para manter a escola fechada, para cansarem os pais e forçarem as famílias a tirarem os filhos. Em algumas escolas, disseram que os pais não teriam alternativa, porque ou tirariam da escola do campo ou ficariam sem escola, porque nossas escolas fechariam. Mas como nós somos uma comunidade muito bem organizada, sabemos o que é nosso direito. Não falaram desse jeito. Só falaram de protocolos”, disse na época Jaqueline Bozzi, líder comunitária em Joeirana e membro da Associação de Agricultores Familiares de Joeirana, sobre a demora no retorno às aulas presenciais nas comunidades rurais enquanto já ocorriam nas áreas urbanas.
Embora o secretário estadual de Educação, Vitor de Angelo, tivesse declarado na comunidade que a intenção do governo não era de fechar escolas mas de municipalizar, Jaqueline apontou o interesse da superintendência e do prefeito Alessandro Broedel (Republicanos) de fechá-las.
A líder comunitária lembrou que a escola surgiu praticamente junto com a comunidade, há 66 anos. “As duas caminham juntas desde o início. A gente não vai permitir que acabem com o bem mais precioso da nossa comunidade, que é a nossa escola. Quem pensa que o povo da roça não tem conhecimento de nada, está enganado. Na roça tem, sim, gente que estudou, que entende das leis e dos direitos. O povo da roça não é um povo ‘bocó’. Nós não devemos negar a nossa origem”, declarou ao Século Diário.
Centenas de escolas fechadas nos últimos anos
Segundo o Centro de Apoio Operacional de Implementação das Políticas de Educação do Ministério Público (Caope), há 92 escolas do campo no Espírito Santo, sendo que 65% delas não possuem quadra de esportes e 73% não contam com laboratórios de informática. Das 92 escolas, 52 possuem menos de 100 alunos.
De acordo com o Comitê Estadual de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces), em 10 anos, de 2008 a 2018, período em que governaram Paulo Hartung e Renato Casagrande e diversos prefeitos, mais de 500 unidades de ensino fundamental, entre estaduais e municipais, foram fechadas nas comunidades rurais do Espírito Santo.
Alex Nepel Marins, educador do campo e membro da coordenação do Comeces, aponta que os gestores públicos usam diversos argumentos para tentar convencer as comunidades sobre os benefícios dos estudantes irem a escolas nucleares, fora das comunidades, que seriam apontadas como de melhor qualidade. Mas ele acredita que no fundo a motivação é sempre econômica.
Porém, o educador entende que não se pode violar um direito fundamental que é o de acesso à educação, já que normativas como a Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apontam a necessidade de acesso a escolas próximas. “A educação é um direto de todos, independente de raça, etnia, gênero e também de localização geográfica”, diz Alex. “Também se trata de uma tarefa de inclusão de sujeitos que ficaram historicamente excluídos, é uma tarefa de combate à desigualdade social”, alega, sobre o acesso tardio dos camponeses e povos do campo ao ensino formal.
Para Alex, os fechamentos de escolas respondem a um projeto de tentativa de esvaziamento do meio rural e sua comunidades para a implantação de grandes projetos industriais ou do agronegócio. “A gente vive nas últimas décadas um projeto ainda em execução que empurra as pessoas do campo para a cidade. O esvaziamento do campo e a extinção de comunidades e povos tradicionais que vivem da terra para espaço para o capitalismo do campo, que não precisa de políticas públicas no campo. Manter a escola no campo é manter a comunidade viva, resistindo a esse projeto de negação do espaço rural como espaço de vida”, critica.
Ele lembra que as escolas mantêm o vínculo dos sujeitos com suas próprias realidades, o que é fundamental especialmente para crianças e adolescentes, em fase de aprendizado. “As teorias da educação são bem claras nesse sentido. O sujeito aprende a partir de suas experiências e sua realidade, a partir de onde ele vive é que o aprendizado acontece. Seria arbitrário que os sujeitos sejam privados de seu espaço de vivência para aprender a partir de outra realidade. Isso causou e ainda causa muitos problemas culturais, econômicos e políticos na educação das crianças e adolescentes do campo”.
A escola, lembra o integrante do Comeces, é também um espaço fundamental de socialização para as comunidades rurais, junto com as igrejas, servindo como espaço de lazer, integração social e socialização entre crianças, família e professores. “A escola mantém a comunidade viva”, resume.