“Nós temos que enfrentar o debate pedagógico do retorno [das aulas presenciais]. É muito mais complexo do que as questões sanitárias. É claro que esses protocolos são essenciais. Mas nós estamos num momento de medo, que exige que a gente construa pontes, laços, políticas baseadas no diálogo, nas proposições, no acolhimento de sugestões e encaminhamentos, e não de posições tomadas de gabinete”.
O pedido foi feito pela professora-doutora Gilda Cardoso de Araújo, coordenadora do Laboratório de Gestão em Educação Básica da Universidade Federal do Espírito Santo (Lagebes/Ufes), durante reunião extraordinária da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa (Ales) realizada por videoconferência na tarde desta quarta-feira (1), quando citou a série de lives feitas pelo Lagebes durante o mês de junho, para levar mais esclarecimento ao assunto em função dos ruídos da comunicação da Secretaria da Educação (Sedu) com a população, o que chegou a cogitar o retorno das aulas neste mês de julho.
“Há uma angústia muito grande por parte de pais, alunos e responsáveis sobre esse retorno presencial, tanto na rede pública quanto particular, em todas as classes sociais (…) porque pais, mães e profissionais conhecem o chão da escola, que é um espaço de acolhimento, troca, socialização”, ponderou a educadora, citando pesquisa do Datafolha em que 76% dos entrevistados se disseram contrários ao retorno presencial das aulas, pelo menos até o final de 2020, por falta de segurança sanitária.
“Os protocolos sanitários no contexto da pandemia requerem rigidez sobre distanciamento, uso de máscara, álcool etc., que estão na contramão de tudo o que nós apregoamos do ponto de vista de uma cultura favorável ao ensino e aprendizagem”, disse. “Pais e mães de escolas públicas e particulares, caso haja retorno presencial, não enviarão seus filhos porque não se sentem seguros e porque a escola viraria um ambiente de confinamento”, expôs.
“Vamos pensar numa questão importante sobre escolas públicas, que é a alimentação. Nós somos elogiados e reconhecidos por que somos o único país que tem o programa nacional de alimentação escolar. Nos países desenvolvidos, o protocolo de segurança determina que as crianças façam refeições nas salas, não utilizem os refeitórios. Há questões do chão da escola que precisam ser muito bem pensadas. Como universalizar o acesso à merenda universal nas escolas públicas? Temos assistentes de serviços gerais suficiente pra isso? Nem pra limpar banheiro [são em número suficientes hoje]! Talvez não tenhamos nem pias suficientes!”, sublinhou.
Gilda enfatizou também a especificidade do gênero para o planejamento de políticas públicas sobre o assunto, visto que o trabalho docente é realizado essencialmente pelas mulheres. “Nessa sociedade patriarcal, são as mulheres que cuidam. São as professoras que cuidam de seus pais idosos, de seus filhos, que cuidam da casa, da limpeza das compras”, descreve.
E destacou o “papel relevante do Legislativo” na questão, citando três projetos de lei em andamento no Congresso Nacional, que precisam ser acompanhados pela Assembleia: o PL 2949, de Idiulvam Alencar (PDT/CE), que propõe a criação de comissões em nível nacional, local e escolar; o PL 3377 de Sergio Vidigal (PDT/ES), que propõe testagem em escolas de sete em sete dias em profissionais de educação; e o PL 3165, que prevê o repasse de R$ 31 bilhões para estados e municípios investirem em insumos necessários ao retorno.
Sobre o recurso, Gilda ressalta que o valor não é suficiente. “É preciso calcular quanto o Espírito Santo vai precisar para fazer as obras (…) tem sala que não tem janela, tem escola de latinha”, argumentou.
Protocolos sanitários
As exigências sanitárias a serem consideradas para o retorno das aulas foram apontadas pela epidemiologista e professora da Ufes Ethel Maciel, que expôs cinco critérios estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O primeiro é a criação de protocolos diferenciados, de acordo com as características estruturais das escolas e público atendido: ensino fundamental, ensino médio ou superior, escola pública ou privada. “Precisa de um protocolo básico, mas essas diferenças precisam ser avaliadas”, salientou, complementando com o segundo critério, que trata de considerar o contexto em que a escola se encontra, incluindo outras epidemias vivencias na unidade escolar, a violência contra as crianças.
O terceiro critério aborda o momento mais seguro para retomar as aulas presenciais, que deve ser somente com Índice de Transmissão (Rt) menor que 1. Atualmente, esse índice é de 1,3 na Grande Vitória e de 1,7 no interior.
“Além do Rt abaixo de 1, precisa de álcool e gel em todas as salas, de água e sabão em todas as escolas. Nós sabemos e todo mundo que está em escola pública sabe, que quando quebra uma descarga, o banheiro fica fechado um ano. Como vai funcionar esse controle? Se o dispositivo com álcool em gel está funcionando ou se o botão de apertar já quebrou na primeira semana … Tudo isso, senhores deputados, porque, no papel, funciona tudo muito bem, mas nós queremos saber na realidade como os estudantes e professores estarão protegidos”, pediu, lembrando que, hoje, “essas pessoas [professores e estudantes] estão protegidas [em isolamento social dentro de casa]. Essa velocidade está diminuindo porque esse grupo está protegido. No momento em que esse grupo não estiver mais protegido, essa taxa [Rt] irá aumentar, nós teremos que enfrentar novas infecções e novas mortes”, alertou.
O quarto ponto refere-se a medidas de proteção diária. “Nós vamos ter termômetro de mão pra avaliar todos os estudantes e trabalhadores na escola? Vamos ter testagem dos trabalhadores, como todos os países desenvolvidos estão fazendo?”, questionou, citando a situação dos motoristas de ônibus e servidores da saúde que estão trabalhando sem protocolo de testagem, e um trabalho de assessoria feito por um grupo de professores da Ufes para uma empresa francesa que está testando todos os seus trabalhadores a cada sete dias, mesmo não se tratando de profissionais de alto risco, como professores e servidores da saúde ou segurança. “Estaremos dispostos a fazer isso? Porque é isso que tem que ser feito se não tiver vacina”, asseverou.
O último critério da OMS explicado por Ethel refere-se à “segurança de todos”, com ênfase nas pessoas com deficiência! “Passamos muito tempo pra fazer a inclusão desses estudantes e agora há uma preocupação enorme sobre como inclui-los no acesso remoto ou nas aulas presenciais, já que muitos deles têm comorbidades, devido ao uso de medicamentos”.
A reunião foi presidida pelo deputado Vandinho Leite (PSDB), que, nos momentos finais, passou a presidência para Sergio Majeski (PSB), autor do pedido de realização do encontro. Teve ainda a participação de Dary Pagung (PSB), líder do Governo, e de Emilio Mameri (PSDB).
Ficou estabelecido que será feito um documento com as falas e pedidos de encaminhamento de todos os participantes, para ser enviado às secretarias de Estado de Educação (Sedu) e de Saúde (Sesa), cujos representantes estavam presentes: Saulo Andreon, assessor de Gestão Escolar da Sedu; Orlei Amaral Cardoso, gerente de vigilância da Sesa; e Juliano Mosa Maçao, chefe do Núcleo de Vigilância Sanitária da Sesa.
Também participaram: Maria Cristina Rocha Pimentel, promotora do Ministério Público Estadual (MPES); Noêmia Simonassi, do Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Sindiupes); Tadeu Guerzet, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos (Sindipúblicos); Silvio Nascimento Ferreira e Aguiberto Oliveira de Lima, da Associação dos Pais de Alunos do Espírito Santo (Assopaes); Rogerio Nunes Romano, da Comissão de Direito Educacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ES); Camila Tallon Cardoso, da Comissão da Infância e Juventude da OAB/ES; Artelírio Bolsanello, do Conselho Estadual de Educação (CEE); Daniel Barboza Nascimento, do Conselho Municipal de Educação de Vitória (Comev); Gilmar Almeida Nogueira, do Conselho Municipal de Educação de Serra (CM-ES); Itamar Mendes da Silva, da Frente Capixaba Escola Democrática, do Lagebes/Ufes e da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae); Aguinaldo Rocha de Souza, da organização Professores Associados pela Democracia de Vitória (Pad-Vix); Liudimila Katrini Proximozer e Swami Cordeiro Bérgamo, do Sindiupes pela Base; Kelli Christina Louzada, do Fórum Municipal de Educação Colatina; Júlio César Alves dos Santos, coordenador estadual da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME/ES); e Thalismar Matias Gonçalves, do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe/Ifes).
Pela maioria dos convidados, foram tecidas várias críticas sobre a “falta de transparência” na condução do processo decisório sobre o retorno das aulas presenciais e mesmo sobre a forma de manutenção do vínculo entre escola e famílias até o momento e a partir deste mês de julho, quando as aulas remotas serão contadas como dias letivos.
“A Sedu e as prefeituras estão tentando, através das atividades remotas, cumprir os conteúdos do currículo que estavam colocados para serem executados integralmente”, pontou o dirigente da Anpae, Itamar Mendes da Silva.
“O processo de educação se dá no contato entre estudante e professor e com a vida em movimento. As avaliações previstas para esse e o próximo ano devem ser canceladas”, sugeriu, enfatizando também a necessidade de reduzir a quantidade de horas letivas para o ano letivo de 2020 e 2021, para além da redução dos dias letivos, como autorizado pela MP 934. “Não podemos utilizar esse tempo como tempo de aprofundamento das desigualdades sociais. As escolas estão todas num mesmo conjunto e o protocolo de retorno tem que ser igual para todos”, disse, pedindo também por mais investimentos financeiros.
“É imprescindível aumentar o novo Fundeb [Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica], com recursos novos para a educação, se não, não teremos êxito em fazer uma educação digna das nossas crianças e produzir condições para a convivência numa sociedade democrática”, rogou, tocando num ponto exaustivamente abordado por quase todos os debatedores.
As únicas exceções no tom do discurso foram do vice-líder do governo Dary Pagung, que defendeu o trabalho da Sedu até o momento; da promotora Maria Cristina, que disse integrar o Grupo de Trabalho formado pela Sedu e afirmou que, ” partir do momento que a Sedu e a Sesa elaborem os protocolos [sanitários], as famílias ficarão tranquilas [para enviarem seus filhos para as aulas presenciais]”; e do assessor de Gestão da Sedu, Saulo Andreon, que por pelo menos três vezes quebrou a dinâmica da reunião, pedindo a palavra em algumas das vezes em que as críticas foram mais diretas sobre a forma autoritária de decisão por parte da secretaria e sobre a situação precária de muitas escolas, que, a princípio, inviabiliza o cumprimento dos rígidos protocolos sanitários necessários a uma volta de aulas presenciais.
Fechando a reunião, o então presidente Sergio Majeski respondeu ao assessor da Sedu, dizendo que de fato é preciso mais transparência sobre as decisões. “Quando me perguntam o que eu sei sobre o planejamento da Sedu sobre retorno das aulas, eu digo que fico sabendo através da mídia. É necessário abrir espaço para mais diálogo e participação”, concluiu o parlamentar.
Aulas suspensas até 31 de julho
Segundo o Decreto nº 4683-R, publicado no Diário Oficial do Estado nesta quarta-feira (1), está prorrogada a suspensão das aulas presenciais em todas as escolas, universidades e faculdades, inclusive cursos livres, das redes de ensino públicas e privada, no âmbito do Espírito Santo, até o dia 31 de julho.
Painel Covid
O Painel Covid-19 desta quarta-feira (1) confirmou mais 45 mortes e 1.928 casos, totalizando até o momento 1.692 e 48.821, respectivamente.