Famílias como a de Luciene (foto) apontam problemas de falta de estrutura, de proposta curricular específica e de políticas públicas
Os avanços conquistados de forma árdua na área da educação do campo estão ameaçados. Esse é o relato e também medo de pais e professores que atuam em escolas da zona rural do Espírito Santo, que denunciam a desigualdade de acesso a equipamentos tecnológicos, a falta de estrutura para as aulas virtuais e ausência de uma proposta curricular específica. Para eles, a pandemia do coronavírus pode retroceder anos de conquistas.
Luciene da Silva Rodrigues Erculino, moradora de Água Doce do Norte, noroeste do Estado, é camponesa e mãe de dois filhos em idade escolar, Vitor, de 12 anos, e Julia, de três. Ela afirma que os problemas na área da educação do campo são antigos, mas se acentuaram. “A educação camponesa vem sendo atropelada há muitos e muitos anos. A pandemia só agravou a situação. Estou preocupada de nós, camponeses, termos mais um retrocesso na história”, aponta.
Uma das dificuldades apontadas por Luciene é a falta de estrutura das casas para as aulas virtuais. As residências pequenas, muitas vezes sem um espaço separado para o aluno estudar, afetam até a concentração dos estudantes camponeses. “O menino muitas vezes chega da roça, tem que estudar ali no movimento da família, com a mãe fazendo a janta, o irmão menor que tá gritando”, exemplifica.
Além disso, pais e responsáveis também se tornaram responsáveis por mediar o conteúdo que os professores passam para os alunos. Os exercícios, enviados pela internet, por vezes também carecem de orientação, o que pode ser um desafio para mães que nem sempre possuem a alfabetização completa.
“A gente tenta compreender a dinâmica do professor naquela aula que está no aplicativo, no WhatsApp, ou que vem na apostila, mas muitas de nós não damos conta, é um desafio. A gente se estressa com o menino, o menino estressa com a gente, e nós não desmerecemos o esforço que o professor faz, mas acabamos não dando conta de aplicar a aula como deveria”, declara.
Para a mãe, que integra o Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces), as imposições do novo cenário podem representar um retrocesso de direitos que foram conquistados ao longo dos anos.
“Quando começou um processo de educação letrada para o povo, os camponeses ficaram pra trás, por estarem em condição remota, por ser aquele povo que está longe, que tem que ficar na roça mesmo. Nós fomos os últimos a chegar. Nós fomos os últimos a sermos educados. E aí, teve um período em que a gente conseguiu fazer nossas escolinhas aqui perto de nós. Começamos a nos educar, mas com esse novo modelo de educação, é possível que a gente tome outro tombo na história”, enfatiza.
Desafios são antigos
Os problemas ligados à educação em áreas de zona rural no Espírito Santo não começaram com a pandemia. Para Rogério Cipriano Moreira, diretor da Secretaria de Meio Ambiente e Educação no Campo do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes), há uma grande dificuldade de manutenção das escolas do campo nas comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhos por falta de investimentos, recursos materiais e humanos.
“Não existe uma proposta curricular específica capaz de tratar das questões locais e da realidade do campo, um currículo próprio, com olhar pedagógico capaz de atender o acesso e permanência dos estudantes, que desenvolva empatia, que ofereça condições necessárias e espaço físico adequado, com disponibilidade de profissionais nas diversas áreas do conhecimento, com conteúdos e práticas de valorização da vida, respeitando valores e costumes do cotidiano próprios dessas realidades”, denuncia.
O professor relata que, em 2019, a comunidade escolar e o sindicato travaram uma batalha para a manutenção nas regiões de Boa Vista e Cachoeirinha, zona rural de Cariacica. “A intenção do governo do Estado era o fechamento e alocar os estudantes numa realidade urbana em descompasso com suas vivências e experiências afetivas e significativas na vida das famílias dessas escolas. Com luta e parceria do Sindiupes, conseguimos sensibilizar o governo municipal numa ação conjunta, conseguimos mantê-las funcionando”, aponta.
Com a pandemia, os desafios se intensificaram. Rogério lembra que os educadores precisam utilizar recursos próprios para a garantia do próprio trabalho, adaptando o espaço da casa, os gastos de energia, o planejamento extensivo de aulas e as mudanças na rotina familiar. “Estamos cansados, um trabalho invisível, que exige muita dedicação e pouco reconhecido pelos órgãos oficiais e parte considerável da sociedade”, enfatiza.
Na última quinta-feira (15), o Governo do Estado encaminhou à Assembleia Legislativa um projeto de lei que autoriza a concessão do benefício de R$ 5 mil para aquisição de computadores para os professores da Rede Estadual. Caso seja aprovado, os educadores também devem receber uma ajuda de custo mensal de R$ 70 para apoio à contratação do plano de internet.
Rogério, que também é professor em uma escola na comunidade de Novo Horizonte, em Cariacica, acredita que os esforços da sociedade civil organizada têm gerado avanços, mas ainda pequenos. “No Plano Estadual de Educação não houve um amplo debate com participação da sociedade civil e comunidade escolar”, relembra.
Evasão
O fechamento de escolas do campo no Espírito Santo tem gerado debates há anos. Em março deste ano, o conselheiro do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE), Rodrigo Coelho, se posicionou sobre decisões adotadas por municípios capixabas que queriam fechar escolas do campo de menor porte. Segundo ele, não há orientação do órgão para a nucleação das instituições e as prefeituras deveriam levar em conta aspectos pedagógicos e não só financeiros.
“Antes mesmo da pandemia, era muito comum a gente ver os meninos de doze, treze, quatorze anos, evadindo da escola, por quê? Porque as escolas que o Estado oferece hoje, elas não atendem à necessidade do filho do camponês […] O percurso que a gente faz com trinta minutos normalmente, a gente gasta duas horas, porque tem que ficar pegando os outros colegas. Isso já estava dificultando pros nossos meninos irem pra escola”, afirma.
Século Diário questionou a Secretaria de Estado de Educação (Sedu) se o Governo do Estado possui algum levantamento sobre a evasão escolar em instituições da zona rural do Espírito Santo, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Vacina e segurança
O Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) divulgou um levantamento, com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2019, que apontam mais de 70 mil matrículas em escolas rurais da rede pública do Espírito Santo. O número contempla alunos de instituições federais, estaduais e municipais.
“Se implantarem um modelo de educação virtual, a gente vai ficar pra trás de novo, né? Nós vamos continuar sendo o povo da roça que não sabe nada socialmente falando, o povo bobo, que não tem condição letrada”, enfatiza Luciene.
Apesar dos problemas que surgem com o trabalho remoto, a mãe acredita que o retorno dos alunos para as salas de aula sem a vacinação em massa da comunidade escolar seria um massacre. Para o professor Rogério, a imunização também é o caminho. “Um grande desafio do tempo atual é garantir o acesso e permanência dos profissionais e estudantes das escolas no campo com vacina e segurança”, destaca.