Comunidade quilombola Córrego do Chiado denuncia violência da gestão de Daniel da Açaí contra escola
Mais uma denúncia de violência cometida contra uma comunidade rural sob justificativa do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) chega a Século Diário. Desta vez, relatada pela comunidade quilombola de Córrego do Chiado, em São Mateus, norte do Estado, uma das mais de 30 comunidades que integram o Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que se estende também pelo município de Conceição da Barra.
Conforme constam no abaixo-assinado elaborado pela comunidade e encaminhado à gestão do prefeito Daniel da Açaí (sem partido) e ao Ministério Público Federal (MPF), e na nota de repúdio enviada pelo Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) ao Ministério Público Estadual (MPES), o caso ocorreu em agosto contra a Escola Pluridocente Municipal (EPM) Córrego do Chiado, que perdeu a oferta vespertino de cinco turmas do ensino fundamental 1, forçando os alunos do 1º ao 5º ano do período da tarde a serem transferidos para o turno da manhã.
O comunicado aconteceu no dia 8 de agosto, em uma reunião convocada pela Secretaria Municipal de Educação, na pessoa da secretária Marília Alves Chaves Silveira, e a junção das cinco turmas ocorreu apenas dois dias depois, em 10 de agosto, apesar da surpresa e do protesto das famílias dos estudantes.
“Houve a pergunta para nós assim: ‘preferem a junção ou o fechamento da escola?'”, relata a historiadora e professora Suelem Rozário Moreira, mãe de um aluno do 1º ano. “Eu me senti a todo momento dentro da sala coagida, porque eles vieram muito embasados em lei e a gente não conseguiu ter ideia, na hora, da gravidade do que estava acontecendo. Então, depois da reunião, estudei sobre o assunto, conversamos com o Comeces e o Ministério Público, e entendi que eles quebraram várias regras, foram contra a legislação, fazendo essa junção dessa forma. Eles tinham que chegar na comunidade, pedir licença e conversar. Não, simplesmente chegaram impondo algo como se fosse uma terra sem lei, sem regras”.
Suelem conta que, para além do autoritarismo, há agravantes pedagógicos que prejudicam ainda mais os estudantes, pois o fechamento do vespertino aconteceu em agosto, no meio do trimestre, em período de provas e recuperação de provas dos alunos do quinto ano, e, ao mesmo tempo, com o processo de alfabetização no 1º e 2º anos. “Imagine a bagunça na cabeça desses alunos, mudou muito a rotina deles, o horário, a professora. Eu observo que houve uma queda muito grande no rendimento das crianças”.
Ainda sob impacto do choque, as famílias realizaram protestos em frente à escola por dois dias seguidos e encaminharam as denúncias formais, com apoio do Comeces, da Comissão Quilombola do Sapê do Norte e da Associação de Pequenos Agricultores e Moradores Remanescentes de Quilombolas dos Córregos Chiado/Contenas e Região do Município de São Mateus (APAMREQUICO).
Mas ainda não tiveram qualquer retorno dos ministérios públicos, tampouco da equipe da secretária Marília Silveira. “No dia 11 [de agosto], a secretária Marília convocou uma reunião. Fomos com esperança que eles iriam voltar atrás, mas não houve isso. A conversa foi para reforçar que iam fechar as turmas mesmo, que não tem jeito, que é uma reorganização em toda a rede municipal, que todas as escolas com turmas com quantitativo pequeno de alunos estão fazendo essa junção. Ela falou do TAG do Tribunal de Contas também. Só que, até então, a gente não estava ciente do TAG, o que traria de benefício ou malefício para a nossa escola”, conta Suelem.
Os atos da secretária também contrariam uma promessa que havia sido feita dois meses antes à comunidade, complementa. “Em junho nós fomos no setor de Educação do Campo da Secretaria de Educação e um coordenador que nos atendeu disse que não haveria a junção. Porque eles tinham falado que talvez fariam junção, nós fomos saber mais, e eles disseram que iam esperar até o final para avaliar se fariam mesmo ou não”, conta sobre a reunião, registrada em ata, encaminhada ao MPF.
Em agosto, no entanto, aconteceu o oposto. “Eles já notificaram logo a professora, para ela procurar o RH [departamento de Recursos Humanos]. Mudaram a estratégia, já notificaram ela para depois ir falar com a gente que já estava tudo decidido. Ela foi pega de surpresa e nós também. Ela disse que não tinha opção, que se não aceitasse a transferência, seria exonerada”. A professora, ressalta, é moradora da comunidade, o que garantia também uma identificação dos alunos, tratando-se de uma quilombola que conhece a realidade da comunidade. Agora, ela está trabalhando no bairro Litorâneo, distante de casa.
A situação é dramática, reforça a mãe de estudante. “Como uma professora vai ter estrutura mental para atender com excelência cinco turmas em uma sala só? Sendo que o primeiro e segundo ano estão em fase de alfabetização?”, questiona. “Na reunião do dia 11, a gente perguntou isso e a secretária disse que se o professor não der conta, vai ser exonerado. E se o outro também não der conta, vai ser exonerado também, até encontrar um que dê conta. Ela deu certeza que traria um psicólogo para a escola para atender os alunos, mas a professora disse que tem vários ofícios e relatórios com pedidos de psicólogos e até hoje não foi atendido. Também não vieram até hoje aqui fazer uma visita na escola, para ver se está dando certo”, relata.
Irregularidades
Na nota de repúdio do Comeces, os educadores alertam sobre algumas irregularidades cometidas pela prefeitura. “Uma medida dessa natureza [junção de turmas] exige uma análise cuidadosa quanto à viabilidade de formar um só grupo de mais de 16 estudantes em 5 níveis diferentes, do 1º ao 5º ano, sendo um deles com necessidades especiais (…) Destacamos ainda algumas dificuldades que foram criadas com a junção de turmas. Apesar das reivindicações da comunidade local, não houve qualquer análise ou zelo para verificar o impacto pedagógico da decisão sendo tomada no meio do ano letivo, com a troca de professora, além da alteração da rotina tanto dos estudantes quanto de seus familiares com a mudança de turno do vespertino para o matutino. Mas isso não é tudo. A partir do próximo ano, outras consequências também surgirão como a dificuldade de deslocamento de professor/a de Educação Física para atender à reduzida demanda de aulas constantes do currículo obrigatório”.
Sobre o TAG do TCES, o Comeces destaca “a impropriedade da justificativa da Secretaria de que seria uma determinação do TCES. Não há nos termos do TAG assinado pela Prefeitura de São Mateus qualquer exigência de redução de turmas ou de definição de número mínimo de estudantes por turma que possa justificar, ao menos em tese, essa medida. Assim, a justificativa apresentada não se sustenta”.
O diálogo com a comunidade escolar, afirma, é uma exigência constitucional. “Uma gestão democrática da educação como previsto em nossa Constituição Federal demanda a adoção de políticas, em todos as esferas públicas, que garantam a oferta de educação a toda a população em condição que garantam o direito ao acesso, à permanência e à qualidade de ensino sob formas de escuta da população afetada”.
Comunidades se mobilizam
Situações semelhantes à de Córrego do Chiado têm sido denunciadas em todo o Estado neste final de ano. Sob justificativa do TAG do TCES, várias prefeituras têm afirmado obrigação de municipalizar escolas estaduais na zona rural e, as que já foram municipalizadas, como a EPM Córrego do Chiado, estão sob ameaça de fechamento de turmas ou de toda a escola.
Em Itapemirim, a gestão do prefeito Doutor Antônio (PP) anunciou o fechamento de cerca de dez escolas do campo e a transferência dos alunos para a EEEF Graúna, na comunidade quilombola homônima, escola que seria municipalizada. Após forte mobilização popular, uma vitória parcial foi alcançada, com a garantia de não municipalização. Mas ainda há a situação das demais escolas do campo para se resolver.
A política de fechamento de escolas do campo é uma prática antiga no Espírito Santo e também adotada em outros estados, que caminha na contramão do que há de mais moderno no mundo, conforme demonstrou Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação em maio passado, quando esteve na Capital capixaba para participar de uma audiência pública referente aos seis meses do massacre nas escolas de Coqueiral de Aracruz. Ele comparou o Espírito Santo com outros estados que praticam a mesma estratégia de desprezo com os povos do campo, como o Ceará, onde a cidade-referência para o TAG do TCES fechou 60 escolas e gasta R$ 2 milhões por mês com transporte escolar.
“O que se faz aqui no Espírito Santo, Ceará, Pernambuco e outros estados, é um ‘museu de grandes novidades’. Vitor de Angelo [secretário de Estado da Educação] e demais gestores estaduais sequer têm consciência de que estão reproduzindo o projeto de reforma econômica da educação que está sendo revertido nos Estados Unidos e na Europa”, afirmou, na ocasião.