Família de estudante com deficiência intelectual consegue compromisso da Ufes em adaptar atividades em sala de aula
Resistência, persistência, diálogo, diálogo, diálogo. A verdadeira inclusão de pessoas com deficiência (PCDs) na educação requer uma luta permanente. As famílias que buscam a garantia desse direito vivem cotidianamente a necessidade de ensinar professores e gestores da educação como perceber o mundo a partir da perspectiva de quem não tem desenvolvimento físico ou intelectual “típicos”.
As histórias se avolumem em infinitas expressões de vitórias, avanços, retrocessos, da educação infantil ao ensino superior. O relato de agora vem da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que se destaca em diversos aspectos da educação inclusiva no Estado, mas, como qualquer outra instituição de ensino brasileira, constitui um campo de desafios cotidianos para as PCDs.
“A gente tem que lutar mesmo, colocar a boca no trombone. Tem que cutucar, incomodar, dizer ‘ei, eu estou aqui'”, comenta Mariana Saturnino de Paula, integrante da Comissão de Educação do Coletivo Mães Eficientes Somos Nós (MESN), e participante de uma reunião realizada nesta quinta-feira (18) para atender à demanda da família de Samuel dos Santos Martins, a primeira pessoa com deficiência intelectual a ingressar no curso de Ciências Sociais da Ufes. “Foi uma reunião longa, com mais de três horas de duração, de muito embate, mas também de muita vitória”, pondera.
Pelo Coletivo, também participou a coordenadora-geral e mãe do Samuel, Lucia Mara Martins – ele não pode ir porque estava trabalhando – e outras mães do Coletivo com seus filhos. Pela Ufes, a coordenadora do Núcleo de Acessibilidade da universidade (Naufes), Déborah Provetti Scardini Nacari; a diretora do Centro de Ciências Humanas e Naturais (CCHN), Edinete Maria Rosa; o chefe do Departamento de Ciências Sociais, Marcelo Martins Vieira; e o coordenador do curso de Ciências Sociais, Igor Suzano Machado.
Mariana conta que Samuel vem enfrentando problemas nas matrículas, devido aos critérios do sistema –coeficiente, pré-requisito de disciplina, quantitativo de vagas – o que faz com que suas matrículas sejam rejeitadas, e também problemas em sala de aula, devido à falta de métodos adaptados de ensino por parte dos professores. “Falta diálogo entre o Naufes e os centros e departamentos. O Samuel fica invisibilizado”, resume a integrante da Comissão de Educação do MESN.
“Pensei várias vezes em desistir”
“Não consigo ter paz em relação à Ufes. Todo semestre é o mesmo problema: matrícula negada. Quando começou o Earte [Ensino-Aprendizagem Remoto Temporário e Emergencial – programa implementado durante a pandemia de Covid-19], tive rejeitada por causa de vagas. No segundo semestre, mesma coisa. Quase no final do semestre eu soube que ainda não tinha sido matriculado, por falta de vagas. Tinham dito que estava resolvido e eu acreditei, mas um professor ligou pra minha mãe e perguntou se eu tinha desistido do curso, porque ele não me encontrava na lista de alunos”, conta Samuel.
Em relação ao aspecto pedagógico, Mariana ressalta que o Earte evidenciou as deficiências metodológicas da Ufes para atender às PCDs. “Os professores não pensam em práticas pedagógicas nem metodologias que atendam às especificidades de alunos como o Samuel. O Earte só expôs mais isso”, afirma, citando como exemplo as atividades de seminário e podcast, ambos em grupo, em que Samuel ficou excluído, pois não conseguiu participar de nenhum grupo dentro da sala. “Quando você tem um aluno com autismo, com dificuldade de verbalizar, que tem a timidez, não querer aparecer … nenhuma dessas atividades consegue contemplá-lo, pra que ele seja avaliado. Fora as falas da professora durante a aula, onde ele é completamente invisibilizado”, aponta.
Como parte dos “jeitinhos” pra caminhar no curso, Samuel e a mãe precisam investigar, a cada semestre, quais professores são mais inclusivos pra poder tentar a matrícula dele. Quando não há nenhum, acontecem episódios de exclusão como esse. “A professora não conversou comigo. Eu me identifiquei quando começou a aula, que sou pessoa com deficiência, e ela não se prontificou em ter metodologias diferentes nessas atividades”, expõe Samuel.
“Eu tenho dificuldade. Já pensei várias vezes em desistir do curso porque eu estou cansado de tanto problema que está acontecendo comigo e meu irmão. Meu curso não se adapta a mim. As pessoas são amigas, mas eu não me sinto à vontade em relação à turma. Eu tenho medo de perguntar, de tirar dúvidas. Na hora da prova, eu entro em crise. Eu tenho muito medo. Minha família me dá força pra continuar, mas é difícil segurar essa barra sozinho, contra a Ufes toda”, relata.
Especificamente sobre o Earte, Samuel sente que as dificuldades se exacerbaram. “O Earte já é complicado para as pessoas ditas normais, e é pior ainda para as pessoas com deficiência; qualquer tipo de deficiência, mas a intelectual é ainda mais. Esse Earte é praticamente o ensino pra morte”, desabafa.
Encaminhamentos dialógicos
Durante a longe reunião, Mariana e Lucia contam que conquistaram mais alguns avanços para a inclusão de Samuel, abrindo as portas para que as adaptações beneficiem outros estudantes com deficiências.
A diretora do CCHN se comprometeu a resolver os repetidos problemas com as matrículas. “As matrículas são sistematizadas. Mas se não tem condições de mudar os critérios do sistema, o Centro vai entrar e solucionar”, relatam.
Para preencher as lacunas pedagógicas no semestre em curso, o entendimento foi pela promoção de diálogo entre a professora, Samuel e sua família, para que sejam encontradas atividades e métodos que contemplem as especificidades do aluno.
Para os próximos semestres, a proposta do Coletivo é de que os centros e departamentos sempre identifiquem quais os professores mais preparados para a inclusão dos estudantes com deficiência. Tendo como referência a história de Samuel, as mães relataram o longo processo de exclusão que ele vem sofrendo desde que ingressou no curso e como isso tem impactado na relação dele com a universidade e com os estudos. Além disso, o CCHN e o Departamento do curso precisam ajudar a organizar o currículo dos estudantes, de forma não deixarem gargalos. “Eles têm condições de fazer isso. Já fazem com os alunos típicos. Por que não fazer com os atípicos?”, ressalta Mariana.
Nesse diálogo e esforço conjunto, será aproveitada a comissão criada recentemente no curso de Ciências Sociais para resolver problemas pontuais entre alunos, com ou sem deficiência, e professores. “Também propomos que o Naufes crie um fórum de pais e mães de alunos da Educação Especial da Ufes, pra potencializar os diálogos e a luta”.