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‘Sem diálogo com professores, qualquer ação é canhestra’

Historiador André Pereira explica que o descaso com os mais vulneráveis, pelo governo federal, contamina o EscoLAR

Arquivo pessoal

A imposição de atividades pedagógicas não presenciais aos 240 mil estudantes da rede estadual – e, por tabela, a significativa parcela das redes municipais do interior do Estado – por parte da Secretaria de Estado da Educação (Sedu) é um grave, mas ainda recôndito, descompasso no contexto maior de atuação do governo do Estado frente à pandemia de Covid-19. 

Se por um lado, o governo de Renato Casagrande (PSB), assim como os demais governadores do País, assumiu a maior independência possível em relação ao governo federal no tocante à construção de uma “nova cultura” – como ele refirma seguidamente – comprometida com o distanciamento social, vê-se, por outro lado, a pasta comandada pelo secretário Vitor de Angelo aplicar, avidamente, o receituário ditado por Abraham Weintraub, o ministro da Educação de Jair Bolsonaro que insiste em negar a possibilidade de adiar as provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com a mesma veemência com que Bolsonaro nega a gravidade da pandemia, que já ceifou a vida de mais de dez mil brasileiros, segundo os dados oficiais, sabidamente subnotificados.

“Vamos retomar as aulas em breve, nas próximas semanas, e com isso dá tempo sim de salvar o ano letivo. Não podemos deixar os pessimistas e terroristas de plantão, aquele pessoal que está sempre torcendo pra tudo dar errado, ganhar o jogo”, disse Weintrabu há duas semanas, no primeiro episódio do programa Conversa com o Ministro.

Sob a batuta de Weintraub, o MEC tem produzido dissonância no que se refere à regência dos direitos dos estudantes brasileiros, especialmente os mais vulneráveis. Nessa esteira de desarmonia, o Conselho Nacional de Educação (CNE) emitiu parecer em que estimula a adoção de atividades pedagógicas não presenciais nas escolas de todo o País, enquanto perdurar a suspensão de aulas presenciais por conta do isolamento social necessário à redução do contágio pelo novo coronavírus.

Um dia após as declarações do ministro, 17 entidades nacionais da Educação publicaram uma carta aberta em que reivindicam, entre outros pontos: “a reorganização dos calendários escolares assegurando-se a reposição das aulas e atividades de modo presencial, logo que a pandemia esteja superada e as condições sanitárias o permitam, como o melhor modo de garantir o acesso à educação, em igualdade de condições a todos, ainda que para tal seja necessário que as atividades do ano letivo de 2020 sejam estendidas até 2021” e “o reconhecimento de um ciclo letivo 2020-2021 sem a realização de quaisquer avaliações censitárias em 2020 ou no primeiro semestre de 2021”.

Conteúdo ruim

No Espírito Santo, a incorporação do modelo defendido pelo governo Bolsonaro e o CNE tem se dado desde o dia 15 de abril por meio do Programa EscoLAR, em que atividades pedagógicas não presenciais estão sendo transmitidas em quatro canais de TV aberta – contratados pelo valor de R$ 1,1 milhão pelo período de 30 dias – e o diálogo entre professores e estudantes se dá por meio da plataforma EscoLAR, abrigada no Google Sala de Aula. As aulas foram cedidas pelo governo do Amazonas e podem ser assistidas por estudantes das redes municipais também, mas a plataforma só está disponível na rede estadual, havendo então soluções diferenciadas de diálogo sendo criadas por cada município.

Após fortes críticas de entidades representativas de professores de história e geografia, evidenciando a péssima qualidade do conteúdo dos vídeos cedidos – que incluem até citações a Olavo de Carvalho como filósofo, sem qualquer embasamento científico – a Sedu lançou edital para que professores da rede estadual gravem vídeoaulas, batizando a estratégia de IdeAção.

Mas a tentativa de melhorar a qualidade e regionalizar o conteúdo não resolve o problema, afirma o professor André Pereira, do departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro da Associação Nacional dos Professores de História (Anpuh-ES).

Sem diálogo

A raiz do problema começa com a falta de diálogo da Sedu com a categoria de profissionais de Educação. Ausência essa que é histórica da pasta, governo após governo, mas que não teve alteração substancial com o atual secretário.

Entusiasta do Ensino à Distância (Ead) e suas variações – alardeadas como melhor solução para o Brasil pela Fundação Todos Pela Educação – Vitor de Angelo admitiu, na entrevista coletiva de lançamento do programa, em abril, que o EscoLAR já estava praticamente pronto no início de 2020, pois ele “não surge [em sua gestão] por causa da pandemia”, mas que o isolamento social se mostrou como o momento ideal para lançá-lo.

A mesma independência adotada pelo governo Casagrande na busca pelo isolamento social, em contraposição ao governo federal, afirma André Pereira, deveria acontecer no contexto da Educação, na defesa da suspensão das avaliações anuais e reposição integral das aulas presenciais, como reivindica parcela significativa dos professores e pesquisadores, seja individualmente ou por meio de entidades representativas, como Associação dos Docentes da Ufes (Adufes), Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Espírito Santo (Sindiupes) e associações como a de geógrafos e de História (AGB-ES e Anpuh, respectivamente).

“O EscoLAR estava previsto como reforço das aulas presenciais. Mas mesmo como reforço, é grave. Qualquer decisão relativa à educação tem que ter a participação da categoria profissional, um debate público”, explana André. “Esse debate nunca aconteceu”, afirma. Nem sobre o EscoLAR original nem sobre a universidade estadual, em gestação pelo governo de Casagrande, e que prevê cursos de EaD.

“Fazer algo improvisado é só uma maneira de encobrir as coisas. Sem diálogo, qualquer ação é uma solução canhestra. E o resultado é o aprofundamento das desigualdades”, sentencia. 

Além dos profissionais de educação, o pleito pela reposição integral das aulas presenciais e suspensão do Enem e outras avaliações anuais é reivindicado por entidades e diversas organizações representativas de estudantes e pais de estudantes.

Sem Aula, Sem Enem

Em âmbito nacional, a campanha Sem Aula, Sem Enem é convocada pela Uneafro Brasil, Rede Ubuntu e Cursinho Popular Risoflora, ao lado do NOSSAS, do Fórum Pré Vestibular e de organizações de defesa da educação e entidades estudantis. E reivindica “o adiamento do Enem e o direito dos estudantes de escolas pública se prepararem para a realização dos exames, [pois] as provas em contexto de pandemia aprofundam ainda mais as desigualdades de condições para o acesso a Universidade”.
Especificamente quanto ao EscoLAR, a Associação de Pais de Alunos do Espírito Santo (Assopaes) chegou a judicializar o pedido de revogação do programa, mas teve a liminar negada pelo desembargador Adalto Tristão, relator do processo, que, na sentença, disse que, “muito embora esteja sensível aos argumentos colacionados pela impetrante, o caso em tela requer uma análise mais cautelosa, o que será feito no momento processual adequado”, segundo notificou o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES).
“Numa emergência sanitária, tem que parar tudo: aulas, vestibular, avaliações. Fingindo que estamos parando, só agrava mais a crise. A prioridade é a vida. A nossa incompetência em fazer uma parada séria é o que está nos levando a esse resultado”, pondera André Pereira. “Não vamos ‘perder três ou quatro meses de aula ou atrasar a entrada faculdade. Vamos sobreviver a uma pandemia e depois retomar o calendário escolar”, exclama. 
Interesses ideológicos e econômicos

A prioridade pela vida e o cuidado para o não aprofundamento das desigualdades é ressaltado também por um grupo de pesquisadores em Educação de vários estados, entre eles a presidente da Adufes, Ana Carolina Galvão, que publicaram uma carta onde expõem “os interesses ideológicos e econômicos” que sustentam a opção dos governos federal e estaduais pela aulas à distância.

No documento, os pesquisadores reconhecem que “a perda do convívio escolar é, sem dúvida, um dos mais impactantes e dramáticos efeitos das medidas de distanciamento social” e que “em um momento de tamanho apuro da sociedade brasileira, essa instituição-referência [a escola] pode funcionar como apoio, articulando-se a redes de assistência à população, buscando formas de acompanhamento dos estudantes e suas famílias, especialmente aquelas em situação de maior vulnerabilidade”.

Nesse sentido, afirmam que, “se podem ser válidas tarefas e atividades não presenciais de complementação e reforço de conteúdos já dominados pelos estudantes, entendemos que é bastante temerário o ensino de novos conteúdos por essa via”.

A grande questão, explicam, “é que aprender novos conteúdos escolares não se reduz a assimilar novas informações. trata-se de um processo que pressupõe o envolvimento integral do aluno no processo de aprendizagem, não se limitando ao âmbito cognitivo, mas requerendo necessariamente a mobilização de processos afetivos, que participam da própria construção de sentido daquilo que se aprende”, sendo preciso estar alerta “para a atitude oportunista de certos grupos sociais e empresariais que estão transformando o drama social que estamos atravessando em uma ocasião para empurrar e naturalizar as tecnologias do ensino à distância”.

“Queremos a tecnologia como ferramenta para promover um ensino maximamente humanizador, que torne mais potente o professor em sua atuação formativa. Não é isso que está se desenhando no atual cenário”, apontam. “É lamentável, nesse sentido, que Fundações Privadas que trabalham para a reforma empresarial da educação, como é o caso do Todos pela Educação, assumam protagonismo no debate sobre os encaminhamentos da educação em nosso país no contexto dessa pandemia”, expõem.

Precarização do trabalho

Além das evidentes perdas para os estudantes, especialmente os mais vulneráveis, o professor André Pereira alerta ainda para as perdas para a categoria profissional. O modelo empresarial de ênfase em aulas remotas impõe uma precarização sem precedentes ao trabalho do professor. 

“Se permitirmos que isso aconteça, as consequências no futuro estão desenhadas: nossa categoria profissional vai desaparecer. Quem conseguir sobreviver nesse trabalho vai ter um trabalho altamente precarizado, ganhando muito pouco”, vislumbra, espelhando-se no que já acontece aos tutores das universidades estadunidenses. “Tutor não elabora aula nem matéria didático, só faz e corrige exercícios e provas. Isso já acontece nos Estados Unidos e é o que querem fazer o mesmo aqui”, alerta.

“É um cenário muito grave que está sendo implantado em nome da pandemia sem nenhum debate mais sério”, alerta, citando o caso de uma grande escola particular que reduziu em 25% o salário dos professores, apesar do aumento da carga horária de trabalho, em função da preparação das aulas à distância, cujos direitos autorais são escola e não dos professores.

No universo do EscoLAR e do IdeAção, a professora da rede pública Camilla Paulino diz que a dinâmica de exploração é semelhante, com direitos autorais do Estado e pagamento, por cada hora de vídeo, ao equivalente a duas horas de trabalho (contando com uma hora de planejamento), o que, para um profissional com título de doutor, “não chega perto dos 90 reais equivalentes a uma hora só do ‘pré-Enem’ da Sedu”. Isso se o vídeo for aprovado, ressalva.

“Superexploração da força de trabalho”, critica Camilla. “O pior é que profissionais inocentes cairão nessa, em nome da ‘projeção'”, lamenta. “O secretário avisou várias vezes que o Programa EscoLAR poderá ser usado posteriormente. Você, professor, poderá ter sua carga horária reduzida na escola, com a diminuição das aulas (ora, grava uma aula, depois televisiona ou disponibiliza no YouTube, pronto!) e piorar ainda mais sua condição de trabalho”, alerta.

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