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Você sabia que a Ufes possui um curso que forma professores indígenas?

Fotos: Divulgação/Prolind

Uma luta do movimento indígena capixaba quase foi destruída pelo corte de verbas federais na educação pelo governo Jair Bolsonaro. A Licenciatura Intercultural Indígena, que busca formar professores para as escolas localizadas nas aldeias Tupinikim e Guarani no Espírito Santo, tem funcionado com cerca de um terço do orçamento anual previsto.

Mas isso graças a recursos próprios redirecionados pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) para garantir a continuidade do curso, já que o Ministério da Educação não tem repassado os montantes do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind) em todo Brasil.

Diante da situação, o módulo de aulas que seria realizado em julho e agosto está acontecendo em setembro, outubro e novembro, o que prejudica também o projeto pedagógico do curso, que prevê o tempo-aldeia, em que os estudantes realizam pesquisas e projetos em suas comunidades dentro dos temas aprendidos em sala de aula, contribuindo para o diálogo entre o saber científico e o saber popular, cultural e indígena.

Em alguns momentos, o curso só pôde ter continuidade por conta da solidariedade de professores que deram aulas sem receber as diárias que teriam direito. Embora o curso ainda esteja realizando o módulo de aulas que ficou atrasado, já está buscando recursos para a continuidade no próximo ano, por meio da própria Ufes e de emendas parlamentares, tendo em conta que a própria universidade federal vive situação financeira complicada por conta dos contingenciamentos do governo federal que parecem buscar sufocar o ensino superior público.

Apesar das dificuldades, as comunidades Tupinikim estão engajadas para manter o curso em funcionamento, apesar das condições adversas. A Comissão de Caciques, que reúne lideranças de todas aldeias, está a par da situação e também avalia possibilidade de captar recursos por meio de parceiros para manter as atividades.

Licenciatura atende demanda das comunidades 

O curso surgiu a partir de uma reivindicação das comunidades indígenas que vem desde 1999. As discussões se intensificaram em 2000 devido à demanda de ter o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio nas aldeias. Foram feitos seminários, discussões, mas entre muitas indas e vindas, foi apenas em 2009 que o projeto de Licenciatura Indígena pôde avançar, quando a Ufes conseguiu recursos do Ministério da Educação para elaborar o projeto do curso.

Mas ainda seguiram muitos percalços e o início dos estudos só se deu no segundo semestre de 2015, com 70 alunos Tupinikim e Guarani do Espírito Santo, recomendados por suas aldeias e selecionados por vestibular específico, diferenciado e bilíngue. A maioria dos estudantes é de origem Tupinikim, grupo que também é mais numeroso em termos populacionais, mas há três estudantes Guarani.

“Não foi um curso da Ufes para a população indígena, foi um curso pensado pela própria população indígena que a Ufes executa em parceria”, explica Leidiane de Souza Pego Sezinando, coordenadora pedagógica da licenciatura, que mora na aldeia Tupinikim de Caieiras Velha, em Aracruz, norte do Estado. O curso dá continuidade a toda uma série de estudos e construções em torno de uma educação específica e diferenciada para povos originários.

Ela explica que embora tivessem educação infantil nas aldeias, a falta de ensino fundamental e médio nas comunidades provocava uma ruptura justamente no momento complexo da adolescência, o que pode levar a problemas com as questões de identidade e valorização da cultura.

Welllington ÎybatãTupã de Lima Ferreira, da aldeia Tupinikim de Pau-Brasil, é um dos estudantes da Licenciatura Indígena. Ele conta que estudou em sua aldeia até a quarta série, quando teve que ir para escola não indígena em Aracruz até o fim do Ensino Médio. Estudando fora da aldeia por nove anos, acabava perdendo momentos culturais que considerava importante, além de receber uma educação que não considerava as especificidades culturais de onde vinha, num entorno dominados pela visão capitalista e ocidental de mundo.

Como funciona o curso

Na Licenciatura Intercultural Indígena da Ufes, as aulas acontecem aproveitando a estrutura da Base Oceanográfica da universidade, localizada em Santa Cruz, próximo às várias aldeias de Aracruz. A maioria do professores que lecionam na licenciatura são da Ufes, além de professores convidados de outras universidades. Ainda não há professores indígenas locais que assumam disciplinas, embora possam ser convidados por outros professores. Nas aldeias de Aracruz já há seis indígenas com curso de mestrado.

Dentro da estrutura pedagógica, há ciclos comuns e específicos. Entre as disciplina comuns estão Movimentos Indígenas, Direitos e Política Indigenista, Educação Indígena no Brasil, Conhecimento e Interculturalidade, Etnomatemática e outras com foco nas questões indígenas, assim como matérias mais gerais, como Saúde e Meio Ambiente, Filosofia da Educação, Geociências, Matemática e metodologias de ensino.

Depois da oferta do currículo comum obrigatório a todos, os estudantes escolhem uma das três habilitações existentes: Ciências Sociais e Humanidades; Artes, Linguagens e Comunicação; Ciências da Natureza e Matemática.

Dentro do programa curricular estão previstas atividades como Seminários de Integração, projetos de pesquisa e prática pedagógica, estágio supervisionado, trabalho de conclusão de curso e ao menos 200 horas de atividades complementares. Graças ao Prolind, os professores em formação já podem estar em sala de aula nas aldeias como aprendizes.

“A educação busca dar continuidade a nossa cultura, valorizar nossos saberes, é um projeto do povo para o povo. É super importante porque o educador não é simplesmente um professor, é uma liderança e um potencial formador de futuras lideranças”, afirma Leidiane.

Wellington tem consciência que o curso é uma conquista de uma longa luta dos mais velhos e dos antepassados. Lamenta que na própria Ufes poucos saibam da existência da Licenciatura Indígena.

Até o momento há uma primeira e única turma do curso, cuja formatura está prevista para o primeiro semestre de 2022. Outros vestibulares poderiam ser abertos de acordo com as necessidades das comunidades. Mas na atual conjuntura nacional, isso parece pouco provável de ter êxito. O foco agora parece ser de manter e concluir o que que está em atividade, que garanta às novas gerações ser educadas por professores com formação intercultural, o que é minoritário atualmente, além de possibilitar trazer o Ensino Médio para as aldeias.

Não há que se duvidar da força de quem descende de 519 anos de luta neste território de Pindorama, hoje chamado Brasil. Mas é preciso também que a sociedade capixaba se mobilize para garantir essas conquistas que defendem e honram nossa diversidade cultural.

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