Em seu voto, Pedro Valls fez um histórico de vida do sacerdote que deixou seu País para atuar no bairro de Porto de Santana, em Cariacica, classificado por ele como um “local então paupérrimo” no início da década de 1980. “Deparou-se, nesta nova fase de seu apostolado, com aquele que seria seu mais formidável inimigo: o mal infiltrado nas instituições, algo que justificadamente podemos denominar de ‘crime organizado’”, lembrou.
Padre Gabriel lutava em favor dos direitos humanos e por moradia digna, sofrendo várias ameaças de morte após ter descoberto – e denunciado – irregularidades em um loteamento no município. Na noite do dia 23 de dezembro de 1989, o padre foi rendido e morto com um tiro de garrucha calibre 22 na região do tórax, quando ele estava dentro do próprio carro na região de Cobi de Baixo, que fica na divisa entre Cariacica e Vila Velha.
Na versão oficial do crime, os réus pelo crime – Nilson Ferreira Celestino, vulgo “Nilsinho” e Flávio Nascimento da Silva – estariam em um bar da região, quando discutiram com a dona do estabelecimento, que se recusou a vender mais bebidas por receio de um calote do trio (o irmão de Flávio, Fábio, também estava na mesa).
Após a discussão ele teria descido na pista da avenida Carlos Lindenberg e jogado uma pedra no primeiro carro que passou, um Fusca branco da Emater que não parou. Depois de atingir o carro, a pedra ficou caída no asfalto. O Fusca azul do padre, passou e acabou batendo no paralelepípedo. Gabriel Maire desceu para ver o que tinha acontecido. Ao retornar para o veículo, ele foi rendido e não teria esboçado reação. Neste momento, Nilson teria engatilhado o revólver e houve um disparo acidental ao não conseguir travar a arma, que atingiu o padre na base do coração, causando sua morte imediata.
A Polícia trabalhou com duas versões para um crime: latrocínio (roubo seguido de morte) e crime de mando. Esta última foi logo depois abandonada pelas autoridades policiais. A tese de latrocínio se manteve durante anos. Em 1991, a Justiça chegou a prolatar sentença condenatória contra Nilsinho e Flávio. O Ministério Público também defendeu a tese de latrocínio, tanto que sequer recorreu da decisão – que foi alvo de protestos de entidades de direitos humanos e familiares do padre que sempre acreditaram em crime de mando.
Em 2007, o Tribunal de Justiça acolheu o recurso e anulou a sentença de 1º grau, determinado a reabertura das investigações pela Polícia Federal. No entanto, a conclusão da PF (com base nas provas coletadas à época) acabou sendo pela ocorrência de latrocínio. Em novembro de 2015, a juíza da 4ª Vara Criminal de Vila Velha, Ana Amélia Bezerra Rego, declarou extinta a punibilidade dos réus pela prescrição, sem a realização do júri.
Esse detalhe foi lembrado por Pedro Valls em seu voto que evita tecer críticas diretas aos envolvidos na apuração do crime:
“Não estou, com estas palavras, a criticar aqueles que, de boa-fé, divergiram de laudos periciais e sustentaram a versão de latrocínio. A ninguém é dado o monopólio da verdade, afinal. Se agiram de boa-fé, sejam respeitadas suas convicções. Apenas registro o fato de tratar-se, aqui, de crime a ser analisado sob um espectro mais amplo […] Mas vá lá que seja: se havia a dúvida, que o caso fosse ao júri, conforme determinado reiteradamente pelo Tribunal de Justiça. Mas sequer isso! Nosso sistema legal não conseguiu, ao longo de 28 anos, produzir um júri”, afirmou.
Pedro Valls fez uma comparação com a atuação do juiz federal Sérgio Moro, que é responsável pelo julgamento dos casos envolvendo a Operação Lava Jato. “Há quem coloque a culpa pelos sérios índices de impunidade que flagelam meu país sobre as leis e seus formalismos. Mentira! Cínica mentira! Não há Código de Processo neste mundo que possa atrasar um julgamento por décadas a fio!”, exclamou, citando que apenas o juiz federal prolatou 34 sentenças com 170 condenações a 109 acusados poderosos em três anos.
“Eu não sei se estas decisões estão certas ou erradas, se são justas ou injustas. Não li aqueles processos. Sim, não me cabe analisar tais sentenças. Mas cabe-me, isto sim, com a responsabilidade de meu cargo, registrar que elas existem! Contrariando todas as probabilidades, foram prolatadas no tempo correto. Cumpre-me, sim, até mesmo enquanto cidadão, registrar que o Código de Processo Penal utilizado na 13ª Vara Federal de Curitiba pelo Juiz Sérgio Moro é o mesmo a ser utilizado por todo o Brasil. É a mesma lei processual que rege os atos de todos os outros juízes brasileiros”, observou.
Antes de pedir desculpa aos familiares do padre, o relator também lembrou em seu voto que a sua própria família foi vítima de casos de violência, cujos crimes também permaneceram impunes. Em junho de 1990, o tio do desembargador, o então prefeito da Serra, José Maria Miguel Feu Rosa, foi assassinado a tiros. Já em setembro de 1996, Divino Rosa Vecci foi vítima de um tiro na nuca, disparado no meio de um comício, na presença de centenas de pessoas. “Eu conheço, sim, a dor da família do Padre Gabriel”, revelou Pedro Valls.
O desembargador ainda fez um desabafo: “Hoje é, pois, um dos dias mais tristes de minha vida! Um dia de negação de minha profissão. De reflexão – e desilusão – sobre meu papel nesta vida. Cá estou, Desembargador de um Tribunal de Justiça, a cuja família o Poder Judiciário abandonou – e de forma vil – por duas vezes, obrigado a infligir idêntica dor à família de um sacerdote cujo único crime foi vir ao Brasil procurar semear o bem!”.
Pedro Valls encerrou seu voto com um pedido de desculpas, em francês: “Excusez-moi, France, parce que la mort de votre fils Gabriel reste impunie. Excusez-moi, Église Catholique en France, parce que notre omission a fait d'un Père un martyr. Excusez-moi, Père Gabriel – excusez-moi, Père – pour l???absence de justice. Excusez-moi !”. Em tradução livre: “Desculpe-me, França, porque a morte de seu filho Gabriel ficou impune. Desculpe-me, Igreja Católica na França, porque nossa omissão fez de um padre um mártir. Desculpe-me, Padre Gabriel – me desculpe, Pai – pela ausência de justiça. Desculpe-me”.
E sua última frase no voto acompanhado à unanimidade, capítulo derradeiro do caso Gabriel Maire, foi: “Fica, assim, decretada a impunidade, digo, a prescrição”.