Relatório divulgado pela Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), nessa quinta-feira (28), revelou inúmeras mazelas do sistema prisional capixaba, considerado “modelo” pelo governo Paulo Hartung. Entre os dados que se referem aos presos condenados, graves violações de direitos, incluindo suspeitas de maus-tratos, tortura e mortes. Além disso, apenas 10% dos detentos têm acesso ao trabalho e 20% estudam. Há relatos de que, com a recente redução da comida, existem detentos passando fome, e também negativas ao banho de sol, visitas e contato com o mundo exterior.
Elaborado pela equipe do Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública (Nepe) com base em inspeções realizadas nos últimos cinco anos (2013 a 2018), as “Observações Gerais sobre a Execução Penal no Espírito Santo” serão encaminhadas aos órgãos que compõem o Sistema de Execução Penal, como a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), o Ministério Público Estadual (MPES), Tribunal de Justiça (TJES), além de entidades da sociedade civil, para providências. No caso de denúncias, a competência é do órgão ministerial.
Direitos negados
Os defensores contataram que, nos últimos 10 anos, apesar de uma melhora de infraestrutura que teve efeitos como a redução de mortes violentas e do sucateamento, as unidades prisionais capixabas acabaram por prezar excessivamente pela disciplina, negligenciando os direitos dos presos.
“A partir de 2007, o sistema passou por uma reestruturação, tendo uma estrutura física ‘menos pior’ [não de todas], se formos considerar os tempos das “masmorras”, mas prioriza-se mais a segurança e a disciplina do que cumprir a Constituição e outras leis que garantem os direitos dos presos. Esses direitos são negligenciados ou não efetivados, além dos relatos recorrentes de torturas e maus-tratos”, disse Roberta Ferraz, coordenadora do Nepe. “Lembrando que a pena é apenas a restrição de liberdade ou outra medida que for designada na sentença”, reforça o defensor Daniel Cardoso dos Reis.
Onde o dinheiro é aplicado?
A Defensoria aponta que os gastos com um preso no Espírito Santo está numa média de R$ 2,6 a 3 mil por mês, no entanto, os índices de detentos que têm acesso ao estudo e trabalho são pífios 10% e 20%, respectivamente. Além disso, com a troca da empresa que force comida aos presídios, os internos relataram que a quantidade foi reduzida no almoço e no jantar, o que resulta em fome, uma vez que a Secretaria de Estado de Justiça (Sejus) proíbe a entrada de qualquer alimento levado pelas famílias, ao contrário de outros estados.
“A gente se pergunta para onde está indo esse dinheiro. O sistema tem muitos presos analfabetos ou semi-analfabetos que saem do mesmo jeito. Não há estudo para todos, não há curso profissionalizante, a comida é reduzida. No Brasil, não existe pena de morte nem prisão perpétua, assim sendo, nosso sistema na teoria é considerado ressocializador. As unidades prisionais precisam preparar essas pessoas porque elas vão voltar para a sociedade”, explicou Roberta Ferraz.
Tortura, maus-tratos e mortes
De acordo com dados divulgados pelo Nepe, de 2016 até o momento, foram identificadas 10 mortes no sistema prisional capixaba, que não chegaram a ocorrer dentro das unidades, mas que podem ser fruto de omissão. “Não são relatos de mortes violentas, mas podem ter ocorrido por omissão, mesmo sendo difícil comprovar. Os presos relatam que há um colega de cela doente, passando mal, e mesmo com pedido de ajuda, nada é feito de imediato. Quando isso acontece, o óbito é registrado no hospital alguns dias depois. Não é um caso isolado; são 10”, reforçou Roberta Ferraz.
Dados, divulgados recentemente pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), indicam que 41 mortes foram registradas em unidades do sistema prisional capixaba entre março de 2015 e fevereiro de 2018. As estatísticas são da ferramenta online Sistema Prisional em Números, lançada no último dia 18 de junho, e que disponibiliza as informações compiladas pelo CNMP a partir de visitas realizadas a penitenciárias. O CNMP não esclarece por quais motivos as mortes ocorreram, se resultado de violência ou ligadas a outras causas como doenças ou naturais.
Os relatos de suspeitas de maus-tratos e torturam no relatório impressionam. De acordo com os defensores, um vídeo revelou até a presença de uma pessoa com máscara e espada ninja dentro do sistema prisional, causando intimidação aos detentos. Outro problema tem sido o uso de armas não letais, como spray de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e outras. “As armas não letais são permitidas, mas são de difícil controle. Não são respeitadas as distâncias seguras, por exemplo. Há relatos de uso de gás lacrimogênio e spray de pimenta dentro das celas como forma de intimidação. Uma pessoa pode passar muitos anos presa, e os relatos são de que o uso é corriqueiro”, explicou a defensora Ana Luisa Silva Robazzi.
Outro problema ainda é com prisões ilegais, fruto de falta de comunicação entre os órgãos de Execução Penal. Há presos com alvarás de soltura expedidos, mas cuja informação não chega às unidades prisionais, fazendo com que detentos fiquem além do tempo. Nesse caso, os defensores afirmaram que orientam sobre o direito à indenização do Estado.
Um dos estados que mais encarcera
Os defensores destacaram dados que colocam o Espírito Santo com um dos estados que mais encarceram no País, que, por sua vez, já está entre os campeões do superencarceramento no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e China. Apenas neste ano, a população carcerária capixaba cresceu uma média de 5%, passando de 20,8 mil para 21,8 mil presos; desse total, cerca de 60% são condenados, alvo do relatório. Em dezembro de 2014, o número de pessoas com restrição de liberdade era de 16 mil.
“O Espírito Santo é um estado pequeno com uma superpopulação carcerária. É preciso uma nova mentalidade em que a prisão não seja regra. Crimes com menor potencial ofensivo, como furtos sem violência, podem ter penas alternativas em que a pessoa possa aguardar o julgamento em liberdade. A prisão, segundo a Constituição e o Código de Processo Penal, é o último meio a ser aplicado, o que não tem ocorrido na prática”, disse Marcela Ferraz.
Sem banho de Sol
O superencaramento é apontado como um dificultador para cumprimento dos direitos. Há relatos de celas com espaço para quatro presos com até 12. Nesse caso, há detentos que dormem no chão próximo a sanitários ou saídas de esgoto em contato com roedores e insetos. As duas horas de banho de sol também não são cumpridas, assim como não há contato com o mundo exterior. O sistema não permite que o preso tenha um papel, uma foto, nem revista ou livro. Em alguns presídios, é permito apenas a bíblia.
Núcleo
Os dados foram anunciados em coletiva de imprensa que contou com a presença dos defensores que compõem o Núcleo de Execução Penal da Defensoria Pública: Roberta Ferraz (coordenadora), Ana Luisa Silva Robazzi, Daniel Cardoso dos Reis, David de Carvalho Saboya Alburqueque, Rafael Amorim Santos, Carolina Pazos Moura e Mariah Soares da Paixão.
O relatório já está sendo considerado um marco para as entidades que atuam na área de Direitos Humanos. “Mais uma vez, um órgão estatal com atribuição de monitoramento e controle do sistema confirma o que estamos denunciando desde a década de 80, inclusive aos órgãos internacionais. Com o relatório, cai a máscara das instituições e de quem afirma que o Estado serve de modelo. É histórico e marca profundamente o nosso sistema penal e de Justiça”, disse o representante do Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH- Serra), Gilmar Ferreira.