Representantes de entidades de Direitos Humanos repercutiram votos do desembargador Pedro Valls Feu Rosa, confirmando condenações para agentes públicos envolvidos em casos de tortura no Estado. Para eles, as decisões reiteram que o uso da violência e dos maus-tratos são práticas permanentes e institucionalizadas, ocorrendo até em unidades socoieducativas (para menores de 18 anos).
Pedro Valls Feu Rosa, da Primeira Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJES), condenou três inspetores penitenciários da Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) e quatro policiais militares de Cachoeiro de Itapemirim, Sul do Estado. No primeiro voto, negou provimento à apelação, que pedia nulidade de sentença que condenou os réus por tortura em penitenciária estadual (Vila Velha) em 2013. No segundo, reformou decisão de primeiro grau, condenando quatro policiais militares, impedindo, ainda, que o processo, de 2001, prescrevesse.
Em seu voto, Pedro Valls relembrou casos escabrosos de tortura nos presídios capixabas e também fez duras críticas ao sistema: “O sistema penitenciário capixaba foi recentemente elogiado por suas estruturas físicas, sendo reportado como exemplo a ser seguido pelas unidades prisionais do País. Contudo, em que pese os avanços estruturais, um ponto não mudou, a falta de humanização no trato diário com os presos. Vê-se isso claramente nas imagens contidas nos autos. O ar de superioridade, de um autoritarismo cego, impera dentro das unidades prisionais. Consta-se muita arrogância, maus-tratos, tortura e pouca ressocialização”, escreveu o desembargador, que completou: “O resultado: temos índice de reincidência próximos a 80%, dentro dos maiores do planeta!”.
Com base em vídeo anexo aos autos, o desembargador citou um espaço destinado para tortura localizado em presídio de Vila Velha:
“Causou-me imensa perplexidade observar na imagem a identificação do nome dado ao local em que a vítima foi algemada e permaneceu por três horas: SALÃO DE BELEZA! Sim, no vídeo das câmeras de segurança do presídio, denomina-se SALÃO DE BELEZA aquela minúscula sala, vazia, com apenas um corrimão de ferro onde os presos parecem ser costumeiramente algemados, haja vista que quando a vítima ali chegou, outros dois internos já se encontravam. Quando se não bastasse o aviltamento das cenas de violência, é preciso mais. E o mais autêntico sarcasmo atribuir o nome de SALÃO DE BELEZA – lugar onde funcionalmente se vai em busca de cuidar da aparência física – a um espaço onde se causa dor e sofrimento aos internos. Não basta agredir, parece necessário tripudiar!”.
Unidades socioeducativas
A presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Brunela Vicenzi, afirma que denúncias de tortura nas unidades prisionais são constantemente levadas aos órgãos estatais. “Recolhemos e enviamos às instâncias competentes, como TJES, MPES, Secretaria de Justiça e de Direitos Humanos do Estado”, explicou.
Brunela reforça que muitos dos casos citados pelo desembargador Feu Rosa continuam sendo praticados. Em seu voto, o magistrado relata que concedeu habeas corpus a presos que, por falta de água no presídio em pleno verão, estavam saciando a sede com líquido dos sanitários.
“Casos de unidades prisionais que desligam a água durante o dia ainda são relatados, deixando os banheiros com odor insuportável; também banhos de um minuto, incluindo para pessoas deficientes que possuem dificuldade de locomoção. Há até denúncia de tortura praticada em unidades socieducativas, como se fossem minipresídios. A Corte Interamericana já citou o Brasil negativamente nesses casos”, aifrmou Brunela. As revistas vexatórias para familiares também perssistem.
Prática institucionalizada
Para o membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH), Gilmar Ferreira, a decisão do desembargador parece confirmar o que as entidades têm demonstrado há anos. “A tortura e os maus-tratos no sistema prisional são permanentes e práticas institucionalizadas”. Para Ferreira, “as sentenças de um tribunal de segunda instância confirmando que a tortura deve ser combatida, que é algo intolerável e que é um crime imprescritível, são de extrema importância”.
Verônica Bezerra, diretora da Comissão de Direitos Humanos da OAB-ES, também é incisiva: “A prática continua, e agentes do Estado não têm esse direito. Tortura é um crime que lesa a humanidade e que deixa marcas irreparáveis para quem é a vítima e também para quem a pratica”.
Perda de cargo público
Em outro voto, Pedro Valls Feu Rosa condenou os policiais militares Alessandro Marin, Amilton Dias Feliciano, Angelica Zanardi Franco e Vitoriano Rangel Filho, absolvidos em primeira instância, a perda do cargo público e penas de detenção. No dia 12 de junho de 2001, os agentes do Estado torturam um suspeito que imaginavam ser autor de um furto de veículo. Os PMs, que estavam em trajes civis, saíram em busca da vítima e a detiveram na rua sem mandado de prisão ou na prática de flagrante delito, conduzindo-o ao quartel. No local, realizaram a tortura durante seis horas.
O presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Erradicação da Tortura do Estado do Espírito Santo (CEPET-ES), também professor de Direito da Ufes e da FDV, Thiago Fabres, ressalta que a perda do cargo público é importante, pois apenas condenar à prisão é colocar o torturador no lugar do torturado dando uma conotação de vingança. “O que tem que ser feito é justiça, e não vingança”. Para Fabres, no caso de PMs, o mais indicado seria a criação de uma Ouvidoria formada por membros externos à Corporação, de forma de tornar as investigações das denúncias mais imparcial.
Para ele, as condenações recentes do TJES são fundamentais do posto de vista simbólico para combater a tortura no Estado. “Engana-se quem acha que as pessoas mais perigosas estão nos presídios. Condenados por homicídio são 18% do total. A massa carcerária é formada por jovens negros e pobres das periferias, presos por crime ao patrimônio e varejo do tráfico”. Para ele, é preciso aumentar o controle externo às unidades prisionais, tornando-as mais transparentes e acessíveis, aumentando também a participação das famílias e da comunidade no dia a dia dos detentos.
Não punidos pela Sejus
Ao final do voto, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa denunciou a complacência da Secretaria de Estado da Justiça com os autores do crime em presídio de Vila Velha, os inspetores penitenciários Waldoece Apolori Costa Junior, conhecido como Amarelo, então diretor da Penitenciária Estadual de Vila Velha V; Silvano Alvarenga da Silva; e Mário José da Paixão Silvano Alvarenga da Silva, que tiveram processos administrativos disciplinar (PAD’s) arquivados:
“Chama atenção deste julgador o incomum excesso de prazo para o início e para a finalização do PAD. Em data de 05/08/2013, o ilustre Promotor de Justiça, Dr. César Ramaldes, oficiou à Secretaria de Estado da Justiça informando sobre os fatos presentes nestes autos e que lhe haviam sido narrados pelos familiares dos internos. Estranhamente, contudo, a instauração do PAD só veio a ocorrer em29/11/2016 e o início dos trabalhos em 20/02/2017, tudo isso após a prolação da sentença condenatória, ocorrida em 07/11/2016, e quase quatro anos depois da ciência do fato… Fico a me perguntar o critério de gradação utilizado pela Secretaria de Estado da Justiça na aplicação das penalidades administrativas… Ao assistir todo o conteúdo do vídeo, de duração aproximada de 3 horas, e limitar a sua análise às cenas que ocorrem apenas no corredor, com menos de 2 minutos, a Comissão Processante da Secretaria de Estado da Justiça evidencia qual a sua concepção de tortura. Ao arquivar o procedimento em relação aos demais acusados, que presenciaram a situação de castigo dos internos dentro do “salão de beleza”, a Secretaria deixa claro que aplicar castigo a presos que imploram por atendimento, deixando-os por horas algemados em posição que cause dor, é um comportamento institucionalmente aceito e tido como “normal”, estaria, pois, dentro dos “padrões” da Secretaria de Estado da Justiça!
A Secretaria de Estado da Justiça foi procurada por Século Dário, por meio de sua assessoria de imprensa, para que expusse as medidas que adora para coibir a possível prática de tortura dentro dos presídios estaduais. Mas não enviou resposta até o fechamento desta reportagem.