Apreensão do celular e ata notarial são contestadas pela advogada Layla Freitas
O programa de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Fordan/UFES), a Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (Abracrim-ES) e a Comissão Estadual da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Espírito Santo (OAB-ES) questionam uma nova regra estabelecida pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) em relação a pedidos de Medidas Protetivas de Urgência (MPU).
A regra contestada estabelece que as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) exijam, das vítimas de violência doméstica, a apreensão do celular para perícia ou a apresentação de ata notarial, caso a denunciante informe a existência de provas de violência e/ou ameaça que estejam em meio digital, como mídias sociais e aplicativos de mensagens instantâneas. Antes do novo regramento, bastava a mulher apresentar prints e vídeos para demonstrar o risco ou violência à autoridade policial.
Para as entidades, essa exigência dificulta a proteção da mulher, especialmente as mais vulneráveis, uma vez que a ata notarial, contratada em cartório, pode levar até cinco dias para ficar pronta e possui valor elevado para pessoas de classes socioeconômicas mais populares; e a perícia tende a se estender por cerca de quatro meses para ser concluída. Esse período de subtração do celular pode trazer transtornos importantes para a mulher e sua família, já que é comum que famílias de periferia, especialmente as monoparentais, chefiadas por mães solo, tenham apenas um aparelho de telefonia móvel como forma de comunicação e acesso a serviços digitais.
“A Medida Protetiva é de urgência, mas a ata notarial demora cinco dias e a perícia, quatro meses, em média. Sem falar que a mulher vulnerável não tem dinheiro para o cartório e muitas vezes só tem um celular para a família inteira. Um absurdo!”, resume a advogada Layla Freitas, coordenadora do Núcleo Jurídico do Fordan/UFES, presidente da Comissão Estadual da Mulher da OAB-ES, secretária-geral da Abracrim-ES e secretária-geral da Abracrim Mulher nacional. A gratuidade da ata notarial, complementa, se reivindicada pela mulher, precisa ser deliberada pela própria Justiça. As entidades, informa, planejam oficiar o TJES em busca de informações que possam subsidiar mudanças necessárias na nova medida.
“É uma regra que burocratiza o acesso à Medida Protetiva e expõe a vítima a mais riscos”, afirma. Sem um desses dois mecanismos, os prints e vídeos apresentados pela vítima passam a não ser mais considerados pela autoridade policial que formaliza a denúncia, o que reduz a possibilidade de deferimento da MPU, explica a advogada. “Boa parte das violências são perpetradas por meio digital, WhatsApp, Instagram e sem esses elementos há grandes chances do juiz entender que não há elementos suficientes para a concessão da medida, porque você não tem a prova da ameaça, a prova da violência”.
A especialista ressalta que a Lei Maria da Penha estabelece que a palavra da vítima é o suficiente para conceder a MPU, por se tratar de uma medida de urgência, que visa resguardar sua segurança e sua vida, devendo por isso ter um tratamento diferenciado pela autoridade policial e Justiça no tocante à exigência de ata notarial e perícia, que valem para processos criminais em geral. “A gente precisa partir da boa fé das vítimas, quando estamos falando de medida protetiva. Em casos comuns, é justificada sim a exigência para garantir a validade da prova apresentada, mas em se tratando de medida protetiva, é desnecessário. Caso a mulher represente criminalmente contra o agressor, aí sim, a exigência pode ser feita, mas desde que se considere também a condição financeira da vítima. Se ela estiver sendo representada pela Defensoria Pública, como fazer?”, pondera.
Pesquisa e ação
As entidades partem do entendimento que regramentos como esse estão na contramão dos esforços que precisam ser empreendidos para reduzir o número de mulheres mortas por homicídio ou feminicídio e mulheres que sofrem violência sexual, psicológica e física, entre outros crimes previstos na Lei Maria da Penha, índices que, conforme mostram os anuários estadual e nacional de Segurança Pública, só aumentam ano após ano.
Na base de todo esse contexto hostil, está uma cultura estruturada sobre o patriarcado, o racismo e o classismo, sublinha Layla Freitas. A implementação plena da Lei Maria da Penha, incluindo seus aspectos de punição, prevenção e educação, oferece substrato para desestruturar o patriarcado, mas essa plena aplicação está longe de acontecer na prática. O remédio, aponta, está na cobrança da sociedade. “É preciso uma fiscalização e cobrança junto ao Estado para o cumprimento da legislação, e para além da punição. O acolhimento e o fortalecimento das vítimas é algo que ainda é muito falho. E a prevenção e educação, para mudança de consciência e postura, também. Nosso estado ainda é muito machista, inclusive, nas suas instâncias administrativas”, observa.
A união da sociedade civil, entidades de classe e academia são valiosas para apontar caminhos e soluções. Em sua pesquisa de Mestrado, a advogada estuda as medidas protetivas solicitadas, deferidas e indeferidas no Espírito Santo, o que tem revelado padrões de funcionamento da Justiça e as lacunas que precisam ser preenchidas para trazer mais segurança às mulheres em situação de violência.
“Por meio da nossa pesquisa estamos conseguindo compreender aonde e com quem o Estado falha. A partir disso, poderemos propor políticas públicas eficientes, que combatam esse tipo de situação. O Fordan e a pesquisa têm, efetivamente, demonstrado que a justiça não conduz os casos de violência, em especial de medidas protetivas de urgência, de forma a, de fato, proteger todas as mulheres. As mulheres em situações de vulnerabilidade têm estado em maior risco e é isso que estamos comprovando. Assim, poderemos cobrar, fiscalizar e propor políticas que salvem nossas mulheres”.
A pesquisa, afirma, se alinha com seu propósito, como advogada e mulher, que é “construir uma sociedade menos violenta”. Para isso, é preciso “compreender onde estão as falhas do sistema e buscar dirimi-las, para que todas as mulheres possam ser livres”.