Juíza não viu omissão do Estado em garantir tratamento adequado ao detento. Defesa recorreu e prepara notícia-crime
A juíza Sayonara Couto Bittencourt, da 4ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Municipal, Registros Públicos, Meio Ambiente e Saúde da Comarca da Capital, negou pedido de indenização à viúva e a duas filhas menores de idade do detento Alberto Neres Santana, que morreu de tuberculose no Centro de Detenção Provisória de Viana (Processo Nº 5010550-29.2022.8.08.0024).
Na sentença em que extingue o processo, a juíza afirma “não haver provas da omissão do poder público em prestar o atendimento de saúde necessário, não havendo responsabilidade do Estado no caso”. Para ela, “não resta plenamente evidenciada a falha na prestação do serviço de saúde que represente prova do caráter decisivo na evolução da doença até o seu óbito, pelo que descabe cogitar, na espécie, existência de nexo de causalidade entre a falta de realização do procedimento e o óbito”.
Em seu despacho, Sayonara Couto Bittencourt concorda com os argumentos do promotor de Justiça Luiz Alberto Nascimento, que, em sua manifestação no processo, alega que “o ente público prestou todos os atendimentos necessários – inclusive, multidisciplinar – ao apenado, que infelizmente veio a óbito por causas naturais, não havendo qualquer demonstração de falha na incumbência atribuída ao ente público”.
Segundo o promotor, “haverá responsabilidade do Estado pela morte do detento em estabelecimento prisional, exceto quando demonstrado que o óbito não poderia ser evitado, por mais que fossem adotas as precauções exigíveis”. Porém, no caso em tela, afirma que “a parte autora [a viúva] deixou de comprovar minimamente a conduta omissiva estatal, bem como o nexo de causalidade existente entre a omissão e os danos morais que alega ter suportado”.
Essa é a segunda decisão em primeira instância do caso, protocolado em abril de 2022, cinco meses após a morte do detento. Após o primeiro julgamento, foi solicitada a anulação da sentença devido à ausência de intervenção do Ministério Público, o que aconteceu, tendo sido feito novo julgamento.
Nos autos do processo, consta que Alberto Neres Santana foi preso no dia 21 de janeiro de 2020, quando exercia a atividade de garçom. No dia 13 de agosto, segundo prontuário fornecido pela Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), ele já apresentava sintomas de tuberculose, mas somente dois meses depois, no dia 8 de outubro, iniciou o tratamento especifico para a doença, indo a óbito em um mês, 9 de novembro. Na certidão de óbito, a causa mortis foi “hemoptise maciça, infecção fúngica em caverna tuberculose, tuberculose em atividade”.
Consta que a viúva de Alberto, Joyce de Brito Alves, trabalhava como auxiliar de serviços gerais quando impetrou a ação e morava com as duas filhas menores do casal no bairro Ilha do Príncipe, na periferia de Vitória. Elas solicitam indenização por danos morais no valor total de R$ 150 mil, uma pensão mensal no valor equivalente a pouco mais de um salário mínimo, até a data em que cada uma das filhas complete 25 anos de idade, e o pagamento das despesas funerárias, no valor de R$ 1,7 mil.
‘Obscuridades na sentença’
O advogado das vítimas, Antonio Fernando de Lima Moreira da Silva, entrou com embargos de declaração, frente à decisão da juíza, e aguarda julgamento. Também prepara uma notícia-crime a ser impetrada na Delegacia de Crimes no Sistema Carcerário.
“É uma ação orquestrada da Sejus para evitar que a pessoa morra dentro do presídio. Eles levam para morrer no hospital, para que não haja investigação. Mas eu vou pedir essa investigação, com oitiva do diretor do presídio e da médica que acompanhou o paciente, pediu urgência do exame, mostrou a gravidade do caso e o que precisava ter sido feito para evitar que ele piorasse”.
Nos embargos, ele elenca uma série de “omissões, contradições, erros materiais e obscuridades na sentença”. Um desses erros, afirma, é o fato da juíza afirmar que a ação aponta “erro médico” como causa da morte de Alberto. Outro, é a juíza dizer que a família teria que provar que Alberto contraiu a doença dentro do presídio.
Antonio Fernando também destaca a rapidez com que a ação foi julgada: 27 horas e 13 minutos, o que explica, segundo seu entendimento, porque “não foram analisados todos os argumentos deduzidos na inicial” e que evidenciam o nexo causal entre a falta de atendimento adequado por parte do governo do Estado e a morte de Alberto.
Outro fato destacado pelo advogado consiste nos registros de atendimento médico: “Ao menos desde o início de agosto, o de cujus [Alberto Neres Santana] apresentava sintomas de tuberculose. Solicitado o exame para constatar a doença no dia 27 de agosto, tal foi realizado somente 6 de outubro! (…) Dois dias depois, Alberto foi atendido por médica que o acompanhava, a qual, em letras garrafais, solicitou urgência no resultado do exame. O que surtiu efeito, pois no mesmo dia, tardiamente, iniciou-se o tratamento”.
No dia 8 de outubro, acrescenta, a médica que o atendeu notou “perda ponderal importante (perda de peso). Com 1,71m, estava pesando 57kg! Estava ele, ainda, com queixa de tosse e sensação febril”. Foi quando a médica solicitou urgência no resultado do exame solicitado no dia 27 de agosto (…) Alberto só foi hospitalizado quando definhava, estava bem abaixo do peso e tinha que ser carregado em cadeira de rodas”.
Antonio Fernando é enfático ao resumir o que expõe como negligência do Estado no tratamento de Alberto: “O início do tratamento foi tardio. uma semana após inicia-lo, estava moribundo: desmaiando na cela, cuspindo sangue, com taquicardia, teve que ser conduzido em cadeira de rodas. Foi-lhe instalado um cateter. Mais uma semana foi necessária para que entendessem – o que era elementar – que não havia mais condições de tratá-lo no presídio: com quadro de alta hemorragia, o mandaram para morrer no hospital”.
O advogado também expõe a contradição flagrante do fato do Estado dispor de um “Programa Estadual de Controle da Tuberculose”, de comemorar o Dia Mundial de Combate à Tuberculose, e de manter um Módulo de Acompanhamento ao Preso com Tuberculose, com base em uma “Nota Técnica para Manejo da Tuberculose no Sistema Prisional do Espírito Santo”, mas não ter seguido seus próprios protocolos para salvar a vida de Alberto.
Um texto extraído do site da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa) aponta “quais procedimentos deixaram de ser seguidos pelo Estado em relação à saúde de Alberto”.
“O diagnóstico da tuberculose é feito por meio do exame de Baciloscopia de Escarro. O resultado fica pronto no mesmo dia, e pode ser feito em todas as unidades de saúde do Estado. Nos municípios de Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica, é oferecido o Teste Rápido Molecular para tuberculose, que identifica o bacilo em até duas horas. Após o diagnóstico, o tratamento também é realizado na própria unidade de saúde, onde o paciente realiza o acompanhamento e retira os medicamentos de forma gratuita. O tratamento é feito por poliquimioterapia (uso de vários comprimidos) com antibióticos. Esses medicamentos devem ser tomados todos os dias, sem interrupção”.
Ou seja, sublinha a defesa, “se no início de agosto, quando o de cujus possuía sintomas inequívocos da doença, tivesse sido realizado e colhido o resultado do exame, com o imediato início do tratamento, o pior não teria acontecido”.
‘Sujeito matável’
De forma ainda mais indignada, o advogado ousa dizer que as omissões do Estado com o detento decorrem de uma cultura de desvalorização e quase desumanização das pessoas aprisionadas no sistema carcerário. “A visão de mundo objurgada traz o preso como sujeito matável, a vida nua, que pode ficar doente, pode contrair doença contagiosa facilmente tratável e não ser tratado pois – com perdão pelo coloquialismo e pela tautologia – sua vida não vale nada e muitos (inclusive atores processuais), intimamente, comemoram a sua morte”.
Seu posicionamento se alinha com reportagem publicada pelo jornal O Globo em março de 2018, com o título “Incidência de tuberculose em presídios é 30 vezes maior que na população em geral”, em que o especialista Carlos Basilia, então coordenador do Observatório da Tuberculose, vinculado à Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), expõe o descaso generalizado com que a doença é tratada nos presídios.
Numa edição das declarações na reportagem, o especialista traz a seguinte explicação: “É uma política de extermínio, do ponto de vista dos direitos humanos. Os presídios brasileiros são fábricas de tuberculose. Faltam condições salubres para a vida ali. É como uma punição em dobro. (…) Os entraves vão desde o diagnóstico lento até o tratamento, que é de difícil adesão por durar ao menos seis meses, com quatro comprimidos diários”.
Ele acrescenta que “a estrutura dos presídios não colabora: o ar circula pouco; a luz do sol quase não entra; as celas abrigam mais presos do que deveriam; e a alimentação, em geral ruim, enfraquece a imunidade. O infectologista Rafael Sacramento trabalha no sistema prisional de Pernambuco há dois anos, e um dos aspectos que mais o alarmam é como a arquitetura e as condições de higiene de grande parte das penitenciárias são ‘perfeitas’ para que a tuberculose se espalhe. — O ideal seria que as janelas fossem altas. Assim, o ar quente sairia por ali e o ar frio entraria pelos corredores, que deveriam ter respiradouros. Da forma como é hoje, formam-se bolsões de ar quente, e esse ar não circula — analisa. — A luz solar, que mata a bactéria causadora da doença, entra pouquíssimo. As celas são estufas para proliferação da doença”.