Fibria (Suzano) conseguiu reintegração de posse ao se comprometer em preservar as comunidades quilombolas
Na estrada que dá acesso à vila de Itaúnas, em Conceição da Barra, norte do Estado, foi possível ver mais de duas dezenas de viaturas da Polícia Militar, além de muitos caminhões com cavalaria, máquinas e tratores. O objetivo, cumprir uma reintegração de posse requerida judicialmente em nome da Fibria Celulose, atual Suzano Papel e Celulose S/A e ex-Aracruz Celulose.
A mudança de decisão judicial foi possível mediante o comprometimento, por parte da empresa papeleira, de resguardar as comunidades quilombolas que estejam em luta pela retomada, reconhecimento, certificação e titulação de seu território tradicional, usurpado pela empresa há mais de meio século.
“Alega a autora que a reintegração de posse não atingirá nenhuma ocupação em território quilombola e que ‘concorda e assume o compromisso de não proceder com a reintegração de posse naquelas áreas específicas dentro da matrícula a ser reintegrada em que for demonstrado que a ocupação de perímetro restrito esteja sendo ocupadas por pessoa remanescente quilombolas e cuidará para que não seja atingida nenhuma comunidade já certificada pela Fundação Cultural Palmares e, consequentemente, nenhuma família já cadastrada perante o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]'”, argumenta a magistrada.
O Ministério Público Federal (MPF) também pediu que a reintegração fosse mantida, desde que preservadas as famílias quilombolas, com o objetivo exatamente de fortalecer a luta dessa população tradicional.
“Há que se considerar que existe notícia nos autos sobre áreas invadidas, como se vê da nota emitida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que afirmou que as comunidades quilombolas vêm se deparando com invasão de suas terras por terceiros não quilombolas“, expõe a juíza. “Assim, conforme salientado pelo MPF no parecer juntado no evento 104, o cumprimento da medida teria como efeito exatamente a proteção dessas comunidades vulneráveis, em conformidade com o escopo da ADPF nº 742”, aduz.
Ante o exposto, conclui a magistrada Renata Cisne Cid Volotao, “reconsidero, em parte, a decisão proferida no evento 94 e determino o cumprimento da medida liminar de reintegração de posse deferida na decisão do evento 67, ressaltando, expressamente, que não devem ser atingidos os membros da Comunidade Quilombola de Angelim I ou de qualquer outra comunidade quilombola certificada pela Fundação Palmares”.
Ressalte-se, ainda, prossegue, “que a autora deverá adotar todos os protocolos de segurança no que se refere às medidas para evitar a contaminação pelo Covid-19, conforme os termos da petição do evento 102, na qual a autora garante que ‘no ato da reintegração de posse, a Suzano ofertará máscaras e álcool em quantidades suficientes, assim como caminhões para o transporte da mobília dos réus/invasores, e demais aparatos para a execução da reintegração de posse do imóvel com todos os protocolos de segurança necessários para que se evite a contaminação pela Covid-19′”.
Conflito histórico
Esse foi mais um capítulo da longa história de usurpação do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que envolve os municípios de São Mateus e Conceição da Barra. A região configura a principal área reivindicada por remanescentes de quilombos no Espírito Santo, que tem mais de 40 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, em mais de vinte municípios, onde vivem mais de quatro mil famílias, quase metade delas apenas no Sapê do Norte. Mas o processo foi finalizado até o momento em apenas uma, que já recebeu a titulação, em Ibiraçu. Há ainda várias que ainda não iniciaram o processo de reconhecimento.
No Sapê, as comunidades certificadas – bem como as que estão em processo de certificação, nas retomadas quilombolas reconhecidas pelo movimento quilombola – convivem com a ameaça constante do deserto verde de monocultivos de eucaliptos da Suzano/Fibria/Aracruz, empresa que se apropriou dos territórios tradicionais dos descendentes de quilombos em meados do século XX, queimando e derrubando 50 mil hectares de Mata Atlântica, expulsando famílias para as periferias das cidades do norte e da Grande Vitória, e matando incontáveis nascentes, lagoas e córregos, além de despejar intenso volume de pesticidas sobre esses corpos d’água e sobre as comunidades, tendo havido diversos casos de envenenamento de lavouras e até escolas.
Mais recentemente, ao deserto verde e à truculência com que os agentes da multinacional se dirigem aos quilombolas – há relatos de envenenamento de hortas com pesticidas de forma proposital, de xingamentos e ameaças, inclusive em denúncias no MPF e na Ouvidoria do governo do Estado – se somam a chegada de milícias e associações apócrifas de agricultores, que têm loteado áreas pertencentes ao território quilombola, atraindo um sem número de famílias de fora do movimento quilombola, muitas delas, enganadas pelas associações, que têm trazido mais tumulto, violência e injustiça à região.