Decisão nega pedido do Ministério Público Federal sobre território quilombola
O juiz federal Nivaldo Luiz Dias, da 1ª Vara Federal de São Mateus, negou o pedido do Ministério Público Federal (MPF) em relação ao Córrego do Felipe, pertencente à comunidade quilombola de Angelim I, em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo. O MPF solicitou a “suspensão de todos os atos preparatórios da reintegração, com o consequente recolhimento imediato do mandado de reintegração de posse e comunicação urgente, por Carta Precatória, para o juízo de Conceição da Barra/ES”.
O magistrado despachou nos autos por ocasião das férias do juiz federal Ubiratan Cruz Rodrigues, que em outubro último, deferiu liminar em favor da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose) em ação que requereu reintegração da área.
Ao contrário do que foi publicado por Século Diário na ocasião, o magistrado determinou a reintegração, mas não estabeleceu “o desfazimento de quaisquer construções e/ou plantações que tenham sido realizado (sic) no local” nem multa de R$ 5mil “por invasor, caso venham os requeridos descumprir a ordem judicial ou cometer nova turbação ou esbulho”. Também não obrigou que os quilombolas se mantivessem “afastados da área em litígio a uma distância mínima de dois mil metros” nem que no “Mandado Reintegratório conste, desde que necessária, a possibilidade de requisição de força policial a fim de que seja efetivada a Medida Judicial em tela”.
O MPF esteve na região no dia 20 de janeiro e afirma que “constatou a presença de pessoas socialmente vulneráveis no local”. Colnforme consta no documento, são 24 famílias na área, totalizando 120 pessoas, entre elas, 26 crianças, uma delas com deficiência. “Durante a visita, foi possível conhecer o local, composto atualmente por casas humildes e diversas agricultoras cultivadas para o próprio sustento. Os membros da comunidade foram uníssonos em se autoidentificarem como quilombolas e relataram terem estabelecido suas vidas no local há anos”.
O MPF também apontou que “se por um lado é fato incontroverso que a área ocupada pela comunidade faz parte do território quilombola Angelim I, por outro, o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] registra que a ocupação da comunidade Córrego do Felipe é posterior à elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação de Angelim I”. Contudo, o MPF pontua que chegou ao seu conhecimento a ata de uma reunião realizada em 15 de dezembro de 2024, “subscrita por moradores de Angelim I, integrantes da Associação de Agricultores da Comunidade Quilombola Angelim I (Aacqua), oportunidade em que ‘apadrinham’ o núcleo Córrego do Felipe”.
O MPF se baseia, ainda, no princípio da cidadania e dignidade da pessoa humana, presente na Constituição Federal, alegando que “o desalojamento de 24 famílias esbarra na proteção dos direitos à dignidade humana, especialmente no tocante à integridade física, à segurança e à moradia”. Também se baseia em outros documentos, como o Resolução nº 10/2018, do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que prevê que “enquanto não houver solução garantidora de direitos humanos, deve-se permitir a permanência das populações nos locais onde estiverem se estabelecido”.
Na decisão do juiz Nivaldo Luiz Dias, consta que a fundamentação que julgou procedente o pedido para determinar a reintegração da Suzano na posse no imóvel foi que tanto o réu quanto a Comunidade Córrego do Felipe tiveram indeferido o pedido de certificação “e o réu não está incluído dentro do relatório antropológico da Comunidade Angelim”. “Assim, afastando-se da discussão da propriedade e sem olvidar das atribuições do Incra, no que tange à demarcação e titulação das terras quilombolas, é possível inferir que a autora possui melhor posse a ser tutelada na presente demanda”.
Consta, ainda, que “posteriormente, ocorra a publicação do decreto autorizatório de desapropriação, como previsto no Decreto nº 4887/2003. No presente caso, há que se reconhecer a melhor posse da autora, e, consequentemente, a procedência do pleito reintegratório. Isso porque a reintegração deve ser concedida àquele que demonstra o exercício do poder de fato sobre o bem, demonstrando melhor posse em face dos esbulhador”.
A ação de reintegração de posse, segundo o juiz, foi ajuizada em 21 de novembro de 2016, “em razão da ocupação inicial de 24 pessoas. Após o regular trâmite desta ação, foi exarada a sentença do Evento 142, a qual julgou procedente o pedido para determinar a reintegração da autora na posse no imóvel”.
“O fato de haver mais pessoas na área do que no início desta ação pode ser creditado ao decurso do tempo desde o ajuizamento da ação, o que, em si, não desvirtua os efeitos da sentença de procedência. Assim sendo, com o trânsito em julgado da decisão, nada mais o que se fazer a não ser iniciar a fase de cumprimento da sentença”, diz o magistrado.
‘Não temos para onde ir’
O agricultor e motorista Renato Guimarães, assim que saiu a decisão judicial, em outubro, relatou que os moradores da comunidade “estão desesperados”, que as pessoas não têm para onde ir, e que, por isso, sequer terão condições de levar seus pertences, como os móveis. Renato destacou, ainda, que perderão várias plantações que utilizam para consumo próprio, como coco, banana e mandioca, e também para comercialização, como a pimenta-rosa ou aroeira. No caso desta última, os quilombolas do Córrego do Felipe são referência no plantio.
O juiz federal Ubiratan Cruz Rodrigues alegou que “a empresa adquiriu o imóvel há mais de 38 anos e sempre exerceu sua posse de forma mansa e pacífica, assim como o possuidor anterior”. Acrescentou que, em 15 de outubro de 2016, “foi constatada pela Vigilância Patrimonial da autora uma invasão efetivada pelos requeridos em parte do referido imóvel, inicialmente em número de 24, que se autointitulam como remanescentes de quilombolas. Desde então, passaram a ocupar indevidamente a área de propriedade da empresa, estando, portanto, caracterizado o esbulho possessório”.
Renato contestou a história narrada na liminar e apontou que as famílias que moram na comunidade estão ali há várias gerações. “Nós não podemos ocupar as terras dos nossos antepassados?”, questionou. A situação, destacou, se assemelha à de quando a Suzano, quando ainda se chamava Aracruz Celulose, se instalou na região, “expulsando os quilombolas”. “Muitos tiveram que ir para a cidade, foram obrigados a mudar totalmente os hábitos de vida”, recordou.
Renato é bisneto de Pedro de Aurora, nascido e criado na região. Pedro, cuja memória permanece viva pelo seu trabalho de preservação da cultura africana por meio da música, em especial o Jongo, é o personagem principal do documentário Mestre Pedro de Aurora – para ficar menos custoso, do cineasta Orlando Bomfim Netto.
Pedro de Aurora, o documentário, e escritos do notável folclorista Hermógenes Lima Fonseca que destacam o mestre da cultura popular, foram mencionados em um relatório protocolado na Fundação Palmares em 2021, com pedido de reconhecimento e certificação, etapa inicial para o processo de demarcação e titulação do território tradicional quilombola. Contudo, o pedido não foi acatado, já que a comunidade de Angelim, a qual Córrego do Felipe pertence, já é reconhecida e certificada.
O documento descreveu o conflito agrário na região como iniciado na década de 1960, com “a chegada das empresas de plantio e extração de eucalipto trazendo o desmatamento, desertificação dos rios e córregos, envenenamento do solo e compra fraudulenta de terras na região do Angelim. A comunidade foi forçada a abandonar suas terras e migrar para as periferias das grandes cidades”. A partir de 2004, as primeiras iniciativas de retomada das terras aconteceram no Sapê do Norte, embasadas no Decreto 4.887/2003, que reconhece os territórios quilombolas e estabelece os procedimentos de titulação das áreas aos descendentes.
No caso da retomada do Córrego do Felipe, o protagonista foi o neto de Pedro de Aurora, Benedito Santos Guimarães, o Neguinho, cumprindo o desejo de seu avô, que “sempre manteve o desejo de voltar às suas origens”. Benedito continua agindo em prol da comunidade. Foi ele, por meio da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe, que acionou o MPF diante da liminar que concede para a Suzano a reintegração de posse.