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Lei Maria da Penha ainda não tem plena aplicabilidade no ES, analisa defensora

Gabriela Agapito coordena ações para garantir, no Executivo, a defesa das mulheres mais vulneráveis

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), com sua atualização sancionada em abril (Lei nº 14.250/23), ainda não tem plena aplicabilidade no Espírito Santo. Os benefícios estabelecidos no novo texto aguardam uma atualização também da estrutura que atende as mulheres em situação de violência, tanto no âmbito do Judiciário quanto do policial e outras instâncias do Poder Executivo.

A avaliação é da defensora pública Maria Gabriela Agapito, coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), que acompanha, desde a publicação da nova lei, os movimentos que precisam ser feitos no Estado para que os objetivos da normativa sejam alcançados.

A ênfase do estudo, ressalta, é a proteção das mulheres mais vulneráveis, a saber, as de pele preta e parda, de baixa renda e moradoras das periferias das cidades. Esse público, conforme concluiu o Fordan – Programa de Extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (Fordan/Ufes), corresponde a 85% dos casos de feminicídio registrados em 2021.

“A Defensoria é a guardiã dos vulneráveis e a gente precisa de mecanismos para fazer a defesa, a tutela desses grupos vulneráveis. Então, o que começamos a fazer nesse caso [da nova Lei Maria da Penha], foi instaurar um procedimento. Com toda a fundamentação da política pública de enfretamento à violência doméstica e familiar que temos e com fundo nessa lei, a gente questiona como o Poder Executivo está se organizando para que isso aconteça, para que a lei seja implementada de fato”, explica.

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O questionamento começou a ser feito com base no chamado Poder de Requisição, que é constitucionalmente garantido à Defensoria Pública. “Ele foi muito combatido, mas conseguimos manter essa prerrogativa, de pedir informações ao Poder Público. É um direito da Defensoria Pública justamente para fazer a defesa dos grupos vulneráveis”.

A coordenadora conta que, passado pouco mais de um mês desde a sanção presidencial, os relatos que chegam à DPES, seja por parte das mulheres agredidas ou de organizações que prestam assistência a esse público, é de que as inovações da lei ainda não acontecem nas delegacias capixabas. “Esperamos que seja um momento de reorganização, que venha uma resposta positiva do Poder Público, no sentido de aparelhamento da autoridade policial para fazer esse tipo de atendimento”, pondera.

A reorganização, elenca, deve incluir formações dos servidores, desde os delegados até os demais servidores que fazem o atendimento, passando pelos policiais. “Pressupõe uma movimentação de capacitação de quem está na delegacia, para fazer um acolhimento adequado à lei, entender até onde pode indeferir os requerimentos de medida protetiva e como fazer cumprir as medidas protetivas deferidas”, exemplifica.

O foco nas delegacias é porque o novo texto legal estabelece que a mulher pode receber a Medida Protetiva de Urgência (MPU) da própria autoridade policial em um prazo de 24h a no máximo 48 horas. Só depois, o caso segue para o Judiciário, onde o magistrado pode confirmar ou não a MPU.

“As medidas protetivas podem ser propostas independente de uma ação penal, de um inquérito policial, de uma ação civil. O que precisa é o requerimento da mulher e a situação de risco. Ela não tem uma natureza criminal, você não precisa de uma ação penal ou da ocorrência do crime para um instrumento de proteção das mulheres valer. É isso. Mas ela tem aplicabilidade no momento? No momento, não”, complementa a análise.

Microcosmos

O mesmo estudo do Fordan mostrou que nos estados onde há maior percentual de negativa de MPU, o feminicídio é maior. E o Espírito Santo é um dos três estados onde essa realidade cruel é destaque nacional. Reconhecidamente conservador e machista, que tradicionalmente figura no topo do ranking de violência contra a mulher, o Espírito Santo tem, nas suas instituições, um reflexo da própria sociedade. E com o Judiciário isso não é diferente, como seguidamente vem noticiando Século Diário.

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“As instituições reproduzem a sociedade, são um microcosmos da sociedade em que a gente vive, com suas posições de hierarquia, com patriarcado muito forte, com a branquitude muito presente, afetando todo o funcionamento, toda a engrenagem desse sistema de Justiça, que deveria ser um sistema de acolhimento das pessoas, com um olhar diferenciado para as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade. E a gente considera as mulheres em situação de violência como um grupo hipervulnerável. Pensando ainda que as mulheres que mais sofrem violência são as mulheres negras, periféricas, há um descompasso estrutural entre a constituição dessas instituições e a realidade posta”, expõe a defensora.

Afora o Judiciário e a Polícia, outras estruturas do poder executivo também precisam se reorganizar para cumprir plenamente a Lei Maria da Penha. “Muitas vezes os mecanismos da lei não atendem às mulheres negras e periféricas. Porque para elas, acionar uma delegacia para denunciar uma agressão, às vezes sem uma política pública de retaguarda, falando mesmo na responsabilização do poder público, que não investe na rede de atendimento das mulheres como deveria, deixa essas mulheres muito desassistidas”.

Violências institucionais cotidianas

Exemplos cotidianos da negligência do poder público e do Judiciário em relação às mulheres multiplamente vulnerabilizadas se repetem. O quadro geral comum, explica Maria Gabriela, começa na dificuldade da mulher chegar na autoridade policial, situação que ficou mais agravada com a instituição do teleflagrante, em que o número de delegacias físicas foi reduzido, como na região de São Pedro.

“Quando ela consegue chegar na autoridade policial, muitas vezes, o relato dela não é acolhido da mesma forma como acontece com outras mulheres. Há, sim, uma discriminação maior. E quando consegue que, a partir da delegacia, seja originada uma medida protetiva e isso distribuído ao Judiciário, o Judiciário muitas vezes não tem uma visão da mulher dentro das suas necessidades”, descreve a coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da DPES.

A defensora conta casos em que o juiz determina uma audiência onde a vítima e o agressor são colocados no mesmo ambiente, para que o relato da mulher seja confrontado com o do agressor. Ocorre também situações em que a Medida Protetiva traz, absurdamente, os antecedentes da vítima. “Não há nenhum lugar na legislação brasileira que fale que você tenha que instruir uma medida protetiva com os antecedentes da vítima”, repudia.

Outro equívoco corriqueiro é o deferimento de MPUs com prazo de validade. “A gente sabe que aquele prazo para a mulher é mais uma violência, mais um desprezo em relação à realidade que ela vive. A lei é muito clara: a vigência da Medida Protetiva é até o momento que ela está em risco. Não são raros os casos em que é revogada e aquela mulher tem muita dificuldade de acessar o sistema judiciário, também porque não há defensor público em todos os lugares, por falta de investimento adequado na Defensoria Pública, e o agressor se vê num salvo conduto de cometer a violência novamente”, relata.

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De fato, o déficit de investimento na DPES é crônico e reflete diretamente na violação de direitos dos mais vulneráveis. “Infelizmente. a Defensoria pública aqui no Estado precisa crescer mais, precisa estar em mais lugares. Tem uma Emenda Constitucional, a 80, que previa que até 2022 deveria ter um defensor ou uma defensora pública em cada comarca, em cada município. Hoje temos em somente 26 dos 78 municípios”, descreve. Há uma previsão de concurso público até o final do ano, que vai oferecer mais 35 vagas, todas para o interior, informa, o que deve melhorar significativamente a situação.

Tecnologia

Numa tentativa de compensar essa lacuna, Maria Gabriela cita uma ação iniciada durante a pandemia, que foi a criação de um mecanismo de requerimento online de Medida Protetiva. A iniciativa partiu da constatação de uma redução no número de MPUs solicitadas, em contraste com o sabido aumento dos casos de violência doméstica em função do confinamento. A saída foi criar um espaço no site onde a mulher conseguia, via google formulários, fazer o pedido em qualquer horário, de forma simples, e com garantia de retorno por parte de um defensor ou defensora em até 24 horas.

O resultado, conta, é positivo. “Impressionante alguns casos”, exclama, citando um de cárcere privado em que a mulher afirma só ter conseguido pedir a MPU porque havia esse canal online. “Ela conseguiu ir no banheiro escondida do agressor, digitar os dados e depois apagar o formulário do histórico do celular”.

Um aprimoramento desse sistema está em elaboração por meio de um projeto aprovado pelo Fordan na Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), que é a “criação de um aplicativo para a denúncia da violência contra a mulher negra e pobre da periferia”.

Coordenadora do programa de Extensão, a professora da Universidade Federal do Estado (Ufes) Rosely Silva Pires conta que à Defensoria caberá receber os pedidos de MPU e pensão alimentícia, que são os instrumentos fundamentais para salvar a vida das mulheres em situação de violência, conforme o programa verifica ao longo de 18 anos de atuação na periferia da Capital. Devido à importância de garantir o acesso a eles, coube à Defensoria assumir essa função do aplicativo.

Ana Salles/Ales

“Historicamente, é com a Defensoria que a gente tem tido esses retornos. Ela é o que nós chamamos de advogados e advogadas das pessoas pobres. As nossas mulheres não possuem condições financeiras para arcar com um profissional que faça a sua defesa, que a represente juridicamente, seja na denúncia da violência, na criminalização do agressor, na solicitação da medida protetiva, no acompanhamento desses processos. A Defensoria faz as denúncias e dá a devolutiva”, explica.

Motivação

A tecnologia, no entanto, não é suficiente para “fazer valer” o direito das mulheres mais vulneráveis. A capacitação dos agentes do sistema policial e Judiciário continua sendo crucial para a implementação plena da lei. E as formações que a DPES anseia por ver acontecer em todo o Estado, ressalta Maria Gabriela, devem partir do reconhecimento da importância da lei para salvar a vida das mulheres. “É uma violência que acontece no âmbito privado, mas não é uma violência privada, o poder público tem que assumir a sua responsabilidade. Se você não der o devido valor ao relato da vítima, você esvazia o propósito da legislação. Porque às vezes não tem como você produzir prova robusta em relação à violência sofrida”, explana.

Corrigir as falhas cotidianas na implementação plena da lei vão passar pelo entendimento de alguns pontos sensíveis, que a atualização de abril fez questão de ressaltar, como a sua aplicação independentemente da motivação da violência, seja porque há uma disputa patrimonial ou porque o agressor é usuário de drogas, ou é um filho ou uma filha.

“A Lei Maria da Penha é clara: é aplicada no caso da violência contra a mulher em relação doméstica, familiar, ou íntima de afeto. O ser mulher já traz em si toda a problemática de submissão nessa sociedade patriarcal e machista”, enfatiza a defensora, sublinhando que o princípio se aplica à mulher cis, trans ou LGBTQIA+.

Maria Gabriela destaca um caso acompanhado pela Defensoria e pelo Fordan, em que o ex-marido e a vítima tinham um bem em comum para partilharem e a Justiça negou a aplicação da Lei Maria da Penha e o deferimento da Medida Protetiva requerida pela mulher, alegando que se tratava de disputa patrimonial.

“Na segunda instância ainda houve um parecer que dizia não haver vulnerabilidade dela. Isso não deve ser perquirido, está fora do escopo da Lei Maria da Penha, não deve ser questionado. É uma mulher que sofreu uma violência em um contexto doméstico, familiar, numa relação íntima de afeto. É isso”, contrapõe.

O caso é o de Rosemery Casoli, já noticiado em Século Diário, como emblemático do machismo estrutural que contamina as instituições capixabas. “Eu tinha medo de perder meus filhos. Geraldo [ex-marido] e o José [ex-cunhado e advogado do agressor] me ameaçavam dizendo que eu se eu denunciasse, eu perderia meus filhos”, conta Rosemery.

Arquivo Pessoal

A reviravolta aconteceu em 2013, com a maioridade do filho mais novo e a certeza de que os tempos de vítima precisavam ter um fim. A chave para dar esse passo, conta, foi conseguir, ela mesma, deixar de ser machista. “A principal tecla que eu bato hoje é: nós mulheres precisamos deixar de ser machista e parar de naturalizar a violência. Um empurrão, um xingamento, não são naturais. Eu precisei deixar de ser machista para parar de achar que era natural e entender a violência como violência”, depõe.

Vendo o próprio machismo, Rosemery começou a enxergar também a misoginia que contamina as instituições que deveriam lhe ajudar. “A partir da minha busca por ajuda e justiça, passei a perceber as violências que sofremos nos espaços em que a gente busca ajuda. Esses locais nos tratam como se nós fôssemos culpadas pela violência. Os servidores também precisam deixar de ser machistas e entender que a violência não é uma coisa natural para nós e que não é isso que nos define”.

Nas delegacias, conta, é comum ouvir “mas o que você fez para ele te fazer isso?”. Mas a pergunta que precisa ser feita, posiciona, é “o que ele deve fazer para melhorar o comportamento dele e parar de cometer violência?”. Ela relata que sempre que chamava a polícia, a fala do advogado do agressor tinha sempre mais importância do que a dela. “O José dizia: ‘tá vendo? Ela fica inventando isso, nenhum juiz aguenta mais, porque ela fica na porta da delegacia inventando coisa’. Daí, o policial, que já tem o pé no machismo, concordava com ele, não fazia nada e me mandava entrar em casa e me trancar”.

Em um dos processos abertos contra os dois agressores, o advogado e ex-cunhado foi preso e a partir desse momento, as agressões do ex-marido também reduziram. Graças ao apoio da Defensoria e do Fordan, Rosemery também conseguiu a medida protetiva para ela e a filha – que também foi ameaçada de morte pelo próprio pai – extensiva ao filho caçula. Outra conquista foi uma decisão em primeira instância favorável a ela na partilha dos bens. A decisão final ainda caberá ao Tribunal de Justiça (TJES) e pode acontecer a qualquer momento. “Eu preciso que o patrimônio fique comigo para pagar as dívidas que ele contraiu em meu nome e da minha filha”, roga.

Ao longo de uma década de luta por dignidade e justiça, Rosemery ainda transformou a sua trajetória em objeto de pesquisa científica, tanto no mestrado quanto no atual doutorado em Ciências Sociais. As dificuldades, conta, são transformadas em objeto de estudo e compartilha de aprendizados.

“Hoje eu sei que a realidade do mundo do Judiciário é mais demorada, mas, independente da morosidade da Justiça e do desrespeito de alguns servidores, é preciso manter o foco no que a justiça prega, na teoria da justiça. Porque o lado teórico é o bonito, mas o prático é aquele que você tem que ‘se virar nos trinta’ para fazer a lei valer para você. Então, precisa persistência, persistir naquilo que a gente busca”.

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