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Ufes pede que AGU reavalie parecer que determina exoneração de Jacyara Paiva

Sindicatos concordam: Justiça não obrigou exoneração e cabe nova interpretação pela Procuradoria Federal, afirmam

Zanete Dadalto/Adufes

A Justiça Federal não determinou a exoneração da professora Jacyara Paiva do quadro docente da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), cabendo nova interpretação, por parte da Advocacia Geral da União (AGU), do texto aprovado em acórdão pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da Segunda Região (TRF-2). Essa tem sido a argumentação central dos sindicatos, dos pesquisadores e movimentos sociais que atuam na defesa da professora e líder sindical e, nesta sexta-feira (19), obteve a chance de ser acolhida pela AGU, em Brasília.

Um pedido de revisão do parecer foi proposto pelo procurador federal da Ufes, Francisco Vieira Lima, e teve apoio do atual reitor, Paulo Vargas, e também do reitor e da vice-reitora eleitos, Eustáquio de Castro e Sonia Lopes, que devem assumir os cargos em março. O encaminhamento foi feito para a Subprocuradoria de Consultoria Jurídica da AGU.

Em nota, a Reitoria ressaltou que “cabe à Ufes apenas agir de acordo com a lei e de acordo com a orientação expedida pela AGU, que é o órgão competente para assessorar os órgãos do Poder Executivo, orientando sobre os efeitos, a abrangência e o teor das sentenças e acórdãos”. Uma nova interpretação da decisão judicial, por parte da AGU, portanto, é a única forma de garantir que Jacyara Paiva continue trabalhando como professora e pesquisadora da Ufes.

O futuro reitor, por sua vez, disse que, mesmo não estando sob sua alçada agir oficialmente nesse momento sobre o caso, se sensibilizou com o caso de Jacyara e estudou o processo, procurando colaborar com uma solução. “A Ufes não pode contrariar uma decisão da AGU, mas acredito que essa revisão do parecer é possível”, disse, acrescentando a importância de que a bancada capixaba no Congresso trabalhe politicamente para que a AGU atenda ao pleito da Ufes.”Nossa bancada pode ajudar nesse momento”, avalia.

O hermetismo que caracteriza a linguagem jurídica, inacessível aos leigos e complexa de interpretação até mesmo para os profissionais da área, é a raiz da polêmica em torno da exoneração ou não da docente.

Vamos aos fatos: a judicialização de sua contratação foi uma iniciativa da própria Jacyara, tomada em 2017, quando a Ufes abriu um concurso para preenchimento de uma vaga no mesmo departamento para onde ela aguardava ser chamada, por ter sido aprovado em concurso semelhante, feito em 2013, e ficado em segundo lugar. Nesse primeiro certame, apenas a candidata classificada em primeiro lugar foi chamada e Jacyara teria preferência para contratação assim que o departamento abrisse nova vaga. Mas, quando a oportunidade surgiu, ao invés de convocá-la, a Ufes realizou um novo concurso, que foi contestado por ela.

Zanete Dadalto/Adufes

Primeira instância

O mandado de segurança que Jacyara impetrou teve decisão judicial, em primeira instância, favorável, garantindo então sua nomeação para o cargo naquele mesmo ano de 2017. A decisão judicial tem literalmente o seguinte texto: “Concedo parcialmente a segurança pretendida por Jacyara Silva de Paiva, apenas para reconhecer o direito da Impetrante de ser nomeada com prioridade para o cargo de Professor do Magistério Superior do Quadro Permanente da UFES, do Centro de Educação – Departamento de Linguagens, Cultura e Educação, na Área/Subárea: Educação, na vaga prevista no Edital nº 42/2017, porquanto publicado ainda na vigência do certame anterior (Edital nº 124/2013), no qual a candidata fora aprovada, sendo a próxima classificada na lista de respectiva, ressaltando-se que a nomeação deverá ocorrer em momento considerado oportuno pela Administração, porém, dentro do prazo de validade do certame regido pelo Edital nº 124/2013, e desde que preenchidos os requisitos de investidura previstos no instrumento respectivo, o que será aferido pela Administração”.

Após essa decisão em primeira instância e sua contratação, o processo recebeu os recursos de praxe, por parte da Ufes e da professora, enquanto ela continuava a trabalhar. Em 2018, no entanto, ambas as partes decidiram dar fim ao processo, concordando que a permanência de Jacyara era o melhor desfecho para o caso, devido à qualidade de seu trabalho e o entendimento de que o concurso de 2017 realmente era irregular, visto que o ordenamento em vigor orienta convocar o candidato aprovado em segundo lugar para ocupar a vaga aberta, desde que o referido concurso ainda esteja válido e o candidato atenda às necessidades do cargo. O acordo foi registrado no memorando 182/2018/GR/UFES.

Segunda instância

Ocorre que, apesar do acordo, o processo seguiu tramitando, devido ao chamado “reexame necessário”, princípio do Direito que obriga que os tribunais avaliem, em segunda instância, todos os processos relativos a órgãos e autarquias públicas que tenha sido decidido pelos juízos, em primeira instância. Ao final desse “trânsito em julgado”, em 2019, os desembargadores do TRF-2 publicaram um acórdão, seguindo a relatoria feita pelo desembargador Guilherme Di Efenthaelerb, decidindo de forma contrária à sentença de primeira instância.

O texto do acórdão diz o seguinte: “Assim, considerando que se trata de prerrogativa da Administração Pública eleger, no âmbito de seu poder discricionário, a melhor forma de prestar os seus serviços, desde que de acordo com a lei, não vislumbro o alegado direito líquido e certo. Ante o exposto, não conheço das apelações, ante a ausência de interesse recursal manifestada pelas partes; e dou provimento ao reexame necessário para reformar a sentença de fls. 62/69 e 113/114, e denego a segurança pretendida”.

Parecer da AGU

Informada do acórdão, Jacyara recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), e foi derrotada em ambos, em 2021. Dois anos depois, a Advocacia Geral da União (AGU) emitiu um Parecer de Força Executória que, referindo-se à decisão final dos tribunais superiores, determinou a exoneração da professora. O parecer foi assinado em 15 de dezembro de 2023, pelo procurador federal Jorge Gavinho Sobrinho e, duas semanas depois, em 28 de dezembro, Jacyara tomou conhecimento da ameaça de exoneração.

A conclusão do parecer é a seguinte: “Pelo exposto, é o presente para opinar pelo cumprimento da decisão judicial, tendo em vista que a reforma da sentença de primeiro grau restitui as posições jurídicas das partes ao estado anterior ao da impetração, tornando a ter plena eficácia os atos praticados pela autoridade administrativa e que foram impugnados no presente processo judicial; qual seja, a legalidade da publicação de novo edital para cargo pretendido pela impetrante, desaguando na ausência de direito líquido e certo a nomeação no cargo almejado. Em síntese, tornou-se nulo de pleno direito o ato de posse e nomeação da impetrante, desaguando na necessidade do imediato desligamento do corpo docente da referida entidade federal. Saliente-se, por oportuno, que, caso remanesça alguma dúvida, compete à Consultoria Jurídica Especializada do órgão local orientar as entidades e autoridades assessoradas, a respeito do exato cumprimento do decidido”.

Zanete Dadalto/Adufes

Outra interpretação

É essa interpretação da decisão da Justiça Federal, exposta no parecer de Jorge Gavinho Sobrinho, o alvo do pedido de reanálise feito pela Procuradoria Federal e a Reitoria da Ufes. A Associação dos Docentes da Ufes (Adufes), a Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes Sindicato Nacional) e os pesquisadores do programa de Extensão e Pesquisa da Ufes Fordan: cultura no enfrentamento às violências, se focam em duas frases do acórdão TRF-2, quando o relator afirma: “não vislumbro o alegado direito líquido e certo” e “denego a segurança pretendida”.

Fato: os desembargadores não reconhecem “o direito líquido e certo” e negam a “segurança pretendida” por Jacyara ou seja, o mandado de segurança que ela havia impetrado em 2017 e fora vitorioso naquele ano. Polêmica: as entidades e pesquisadores afirmam, porém, que essa decisão não significa que os desembargadores determinaram que ela seja exonerada, não havendo sequer menção à palavra exoneração no texto do acórdão.

“A decisão dos desembargadores foi no sentido de que a Ufes não é obrigada a contratar a Jacyara, mas também não era obrigada a demiti-la”, explicou, a Século Diário, o advogado e professor de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Arthur Bastos, membro do Núcleo Jurídico do Fordan/Ufes.

Arthur assina um parecer do Fordan sobre o caso, onde, junto com demais membros do Núcleo Jurídico e da coordenadora-geral do programa, Rosely Silva Pires, acrescentam ainda o contexto administrativo que foi desconsiderado no parecer da AGU.

“O parecer contraria princípios básicos da administração pública, em especial, o interesse público e o princípio do venire contra factum proprium, que proíbe a atuação contraditória do ente público”, afirma o documento. “Em relação ao melhor interesse público, destaca-se que a docente Jacyara Silva de Paiva tomou posse em 2017, exercendo de maneira contínua e compromissada suas funções de ensino, pesquisa e extensão, além de relevante trabalho perante o Movimento Negro a Comissão da Validação da Autodeclaração Étnico-Racial desta mesma Universidade. Um possível desligamento da professora Jacyara, portanto, representa a perda de um quadro importante dessa Universidade, uma vez reconhecida por suas alunas e alunos, professoras e professores e demais colegas de trabalho por sua atuação universitária, o que, obviamente, contraria o princípio do melhor interesse público”, argumentam.

A professora e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Fordan, Carla Appolinário, reforça a argumentação dos colegas. “A sentença afirma apenas que ela não tem ‘o direito líquido e certo’ de ser contratada pela Ufes, mas não afirma em momento algum que ela precisa ser exonerada. O procurador também precisa considerar as questões administrativas, a autonomia universitária”, diz, acrescentando que talvez a docente já possua até mesmo estabilidade no serviço público, considerando que sua contratação aconteceu há mais de seis anos.

Estabilidade sindical

O professor de Direito e presidente do Andes-SN, Gustavo Seferian, concorda com as argumentações jurídicas e administrativas e acrescenta que a ameaça de exoneração também fere direitos sindicatos consolidados no país. Em entrevista à TV Século, lembrou da estabilidade sindical de Jacyara, por compor a diretoria do sindicato nacional . E que se ela for exonerada, será o primeiro caso na história do Andes-SN, fato que irá macular gravemente a imagem da Ufes.

Zanete Dadalto/Adufes

O fato de Jacyara ser uma mulher e negra também é destacado por movimentos sociais relacionados às lutas que ela vem empreendendo dentro da universidade desde que assumiu seu posto, e que pedem apoio à sua permanência, por meio de um abaixo-assinado digitalEntre essas lutas, está a implementação plena das cotas para pessoas negras, indígenas, com deficiência (PCDs) e LGBTQIAP+, tanto para alunos quanto para professores e servidores. 

A decisão de pedir que a AGU reveja o parecer de dezembro de 2023, buscando uma nova interpretação da decisão judicial, que permita à Ufes não exonerar Jacyara e mantê-la no cargo, tomada nesta sexta-feira, é um indicativo de que o diálogo entre os movimentos sociais e sindicais, os especialistas e acadêmicos e os gestores públicos, pode oxigenar linguagens herméticas, como a jurídica e encontrar soluções realmente justas para questões práticas da vida.

“Justiça que enxerga”

O caso de Jacyara parece ilustrar bem a “Justiça de Xangô”, apresentada por Chiara Ramos e Lucas dos Prazeres em artigo publicada na revista Carta Capital. Trata-se, explicam, de uma “justiça que enxerga”. Orixá da Justiça, segundo a tradição e mitologia africana, Xangô carrega uma machadinha de duas pontas, o que significa, para os autores, um senso de justiça que não se perde no hermetismo de um conhecimento que segrega, mas sim, abrange a complexidade da vida real e a interdependência entre todos os seres.

“A justiça de Xangô está para além do ordenamento jurídico, ampliando o olhar para a força das leis do universo que regem a natureza humana e todas as formas de vida na Terra. Xangô tem a obrigação de uma responsabilidade cármica ao julgar. Isso significa que sua decisão também se tornará seu carma. Por isso mesmo, quando julga, o faz sob a lâmina de seu próprio machado, que ao primeiro erro, degola a si mesmo. Tornou-se assim o Orixá da Justiça, pois em sua grandeza e sabedoria, no bater do martelo, nunca errou a sentença”.

Axé! Que assim seja! 

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