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Vara criminal decide pela detenção e multa de agressor de ex-mulher e filha

Rosemery Casoli luta há onze anos por justiça. “Agora me sinto um sujeito de direitos”, afirma

Arquivo Pessoal

O juiz Marcelo Menezes Loureiro, da 10ª Vara Criminal de Vitória, decidiu pela pena de reclusão em regime aberto, detenção e multa contra Geraldo Cassimiro, ao julgar a denúncia encaminhada há quatro anos pelo Núcleo de Enfrentamento às Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres do Ministério Público Estadual (Nevid/MPES). Segundo a sentença, ele é de fato o agressor de sua ex-esposa, a professora e doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Rosemery Casoli, e também da filha de ambos.

Em seu despacho, o magistrado transcreve trechos da denúncia do Nevid/MPES, como o que relata os crimes ocorridos no dia 11 de março de 2020, por volta de meio-dia, no térreo do prédio onde a vítima reside com os filhos e que era usado para fins comerciais pelo ex-marido. O documento afirma que Geraldo chegou ao local, “acompanhado de seus irmãos e mais homens, oportunidade em que passou, junto a eles, a quebrar portas de aço do espaço a fim de conseguir acessá-lo, o que levou a sua ex-esposa a pedir à filha que fosse ao local por temer pelo comportamento desproporcional do Sr. Geraldo”.

A denúncia afirma que a filha tentou conversar com o pai, “o que culminou com um grande entrevero”. Ao tentar telefonar para a polícia, Geraldo teve, no entanto, uma reação ainda mais violenta: “visando impedi-la, a agrediu fisicamente, segurando fortemente pelos braços, vindo a arranhá-la, provocando, assim, as lesões corporais testificadas no laudo pericial. Não satisfeito, o denunciado ainda ameaçou através de gestos a segunda vítima, dizendo-lhe que ‘as coisas não ficariam dessa maneira e que não perdia por esperar’, deixando-a temerosa por sua vida”.

A sentença traz também trechos dos depoimentos de Rosemery, Geraldo e da filha na delegacia. A primeira disse que o ex-marido “falava que se tivesse que sair de casa por força da justiça, mataria ela e os filhos e colocaria fogo na casa”.

A filha contou que, quando finalmente conseguiu chamar a polícia, o pai se escondeu nos fundos da loja e depois ela o ouviu “proferindo ameaças como ‘sua batata está assando’, ‘o que é teu está guardado’, ‘você não perde por esperar’, ‘eu ainda vou te matar’, ‘você está com a asinha muito grande'”. Disse ainda que estava com o corpo tremendo e ânsia de vômito e que, na delegacia, teve crise de ansiedade e não conseguia respirar.

Ao se acalmar, teria prestado queixa, relatando: “que ele teria xingado ela, fazia gestos ameaçadores, que já tiveram outros incidentes, com gravações, e teme que ele possa cometer o ato de matá-la, que ela, a mãe e o irmão eram agredidos constantemente pelo réu; que em evento posterior a esse, já foi ameaçada novamente por seu pai junto com seu advogado, que ele descumpria medida protetiva…”.

Já o réu, prossegue a sentença, negou as acusações de ameaças feitas à ex-mulher e de agressões à filha. Mas, para o magistrado, “nos crimes de ameaça, como os tratados nestes autos, a palavra da vítima alcança especial relevo para o alcance do esclarecimento dos fatos ocorridos em razão da reconhecida obscuridade e clandestinidade destes crimes”. Sobre o crime de agressões à filha, foram considerados principalmente o laudo pericial, que comprovou as lesões, e o depoimento da vítima.

“A culpabilidade se encontra evidenciada com maior grau de reprovabilidade, eis que suas ações ocorreram marcadas por elevado ardil, com grande menosprezo por parte do réu, em relação ao bem jurídico violado. De forma segura, pode-se constatar que suas ações foram perpetradas merecendo mais elevada censura, pois agia dissimuladamente, com deboche na presença de policiais e, além da agressão física, demonstrada materialmente pelo laudo técnico produzido, proferiu xingamentos, aumentando ainda mais o efeito nefasto de sua ação”, ressaltou o juiz.

Enfrentamento

Essa decisão judicial, ainda que em primeira instância, cabendo recurso por parte do réu, é considerada uma grande vitória para a luta contra a violência contra a mulher no Espírito Santo. O caso de Rosemery é acompanhado pelo programa de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Fordan: cultura no enfrentamento às violências, que o tem como um dos casos emblemáticos, por conter as várias formas de revitimização a que a mulher é submetida, tanto pelas polícias quanto pela Justiça, quando procura denunciar seu agressor.

Na Vara da Mulher de Vitória, ela chegou a ter sua Medida Protetiva revogada pela juíza Brunella Faustini Baglioli, como ocorreu em outros casos acompanhados pelo Fordan. A magistrada também declinou do caso e o encaminhou à Vara Criminal, onde o entendimento sobre a gravidade dos fatos culminou nesta sentença de reclusão, detenção e dias-multa.

“Um ano e nove meses de detenção, mesmo sendo em regime semi-aberto, é uma resposta a esse agressor, aos demais agressores e à sociedade, de que a Justiça não aceita mais a violência contra a mulher”, avalia a coordenadora-geral do Fordan, a professora e doutora em Ciências Jurídicas e Sociais Rosely da Silva Pires.

Em sua análise, ela destaca o fato do juiz considerar o depoimento das vítimas para fazer o julgamento. “Ele sempre se remete à fala das duas vítimas, o que nós temos lutado muito para conseguir nas sentenças, porque há sempre uma desvalorização do que a mulher fala, estigmatizando inclusive que a mulher está usando a Lei Maria da Penha para se favorecer”.

Outro avanço, avalia, foi ter valorizado a situação psíquica das vítimas. “Nós temos observado uma dificuldade imensa no reconhecimento da Justiça em relação à violência psicológica, embora essa tenha ganhado uma nova percepção a partir das leis que foram publicadas no ano passado”, aponta.

O juiz Marcelo Menezes Loureiro, por sua vez, afirma a acadêmica, traz a abordagem necessária e baseada no entendimento mais elevado da Lei Maria da Penha. “Ele cita a insegurança, o terror, o pânico que o agressor causou às vítimas. Também destaco quando ele fala da exposição da vítima, a estigmatização. Como ele expôs as duas. Fala dos xingamentos, de uma ação nefasta, comprovada inclusive pela presença dos policiais no local, como pessoas que comprovaram a violência”.

Rosely acrescenta que a sentença diz, ainda, “que agressor agia de forma debochada. Ele destacou a força que a violência psicológica tem na morte da vítima. A gente sempre discute feminicídio enquanto morte do corpo físico, mas a gente esquece que a violência psíquica mata a alma, o desejo da mulher. E ele define a sentença citando a Lei Maria da Penha, para que ela cumpra sua função social”.

A decisão, reforça Rosely Pires, é uma mensagem muito direta para a sociedade. “Ao mostrar que esse crime não é aceitável, o juiz afirma para o agressor: ‘não cometa mais’. Ele aponta que a violência contra a mulher é um crime e a pessoa que comete esse crime vai sofrer, sim, as sanções penais”.

‘Sujeito de direitos’

Em âmbito individual, a sentença também trouxe alento para as vítimas, afirma Rosemery, coroando uma luta iniciada há onze anos, quando ela decidiu romper o ciclo de violências domésticas em que vivia há mais de vinte anos, conforme relato feito a Século Diário, quando o Fordan encaminhou a diversos órgãos de âmbito estadual e nacional as violações de direitos que ela sofria.

Na entrevista a seguir, Rosemery conta porque agora afirma que se sente de fato “um sujeito de direitos”:

Qual o significado da sentença da 10ª Vara Criminal de Vitória a Geraldo Cassimiro, seu ex-marido e pai dos seus filhos, na luta que você vem travando há anos na Justiça?

Desde o ano de 2018, o juízo da 1ª Vara da Mulher de Vitória retirou a Medida Protetiva que me havia sido concedida desde novembro de 2013 e invisibilizou as violências que ele continuou cometendo, isso não só alimentou o seu comportamento agressivo contra mim, como o levou novamente a praticar violências contra a própria filha também. Eu me sentia desacreditada e desamparada pela Justiça, mas, mesmo assim, continuei batendo em sua porta, porque eu ainda tinha esperança de que a minha voz seria ouvida. Essa sentença dada pela 10ª Vara Criminal, mesmo depois de praticamente quatro anos dos crimes por ele cometidos, tem uma significância extremamente relevante para a minha luta, pois significa que ele é responsável, sim, pelos atos de violência que comete, e que não há desculpas para encobrir seu comportamento agressivo e violento.

No ano de 2020, quando o processo referente às violências cometidas por seu ex-marido foi enviado à 1ª Vara da Mulher de Vitória, o juízo declinou a competência para julgar o processo e indeferiu mais um dos seus pedidos de medidas protetivas. Como você se sente em relação às Medidas Protetivas terem sido concedidas pelo juízo da 10ª Vara Criminal e não pela Vara da Mulher?

Eu sou leiga com relação ao funcionamento da Justiça, e achava que todas as Varas se comunicavam e que as informações referentes aos processos eram compartilhadas entre elas. Confesso que ainda não sei como funciona, mas esperava que a minha voz fosse ouvida na Vara da Mulher, um espaço que foi criado para acolher mulheres. Porém, ao ler as decisões proferidas pelo juízo desta citada Vara, percebi que o acolhimento que eu supunha existir ali, na realidade, não existia. Assim, dei graças a todos os deuses pela competência de julgamento ter sido declinada e acreditei que a Justiça seria feita pelo entendimento de outro magistrado. Quando aconteceu a primeira audiência na 10ª Vara Criminal, as minhas palavras foram ouvidas, e mais, tiveram crédito; saí da audiência com a sensação de que eu não era “louca, mentirosa e sem educação”, coisas que as decisões do juízo da 1ª Vara da Mulher de Vitória me faziam sentir. Com relação a essa Medida Protetiva, concedida desde o ano de 2022, me sinto amparada pela Justiça. Mesmo sabendo que um papel não guarda a minha vida e a dos meus filhos, eu sinto que, como cidadãos, não estamos desamparados.

O reconhecimento pela 10ª Vara Criminal de Vitória de que o comportamento dele foi criminoso te afeta de quais maneiras?

Me afeta como mulher, como mãe e como cidadã. Neste momento me sinto valorizada como um sujeito de direitos. Desde quando tive coragem de denunciar as violências que ele cometia, esperei que esse momento chegasse, isto é, o momento em que ele fosse criminalizado pelos seus atos. Ele agredia a mim e aos filhos e depois ficava rindo, assobiando, cantando, ou seja, nos agredir, nos humilhar, nos maltratar o deixava feliz. O primeiro processo criminal contra ele foi iniciado na 1ª Vara da Mulher de Vitória no final do ano de 2013, e mesmo com as denúncias, os vários boletins de ocorrências, os anos que passei sendo atendida por psicólogas do CRAMSV [Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência] de Vitória e também pelo psicólogo oficial da Vara da Mulher não foram suficientes para que os atos praticados por ele fossem vistos como atos criminosos e a Justiça defendida por aquele juízo deixou o processo prescrever. Por isso, mesmo que não seja por todos os atos de violências que ele já cometeu contra mim e aos nossos filhos, só de saber que seus atos praticados no ano de 2020 foram reconhecidos como criminosos e que ele será responsabilizado e penalizado por eles, isso mostra que a justiça foi feita.

O que você destaca neste momento em relação à sua confiança na Justiça?

O destaque central está relacionado ao atendimento humanizado que, tanto eu como minha filha, recebemos ao prestar depoimento na audiência realizada na 10ª Vara Criminal de Vitória em fevereiro do ano de 2022. Esse momento foi fundamental para fortalecer a minha confiança na Justiça com relação à criminalização das violências praticadas por Geraldo Cassimiro contra nós. Por causa do acolhimento dado pelo juízo desta citada vara, as minhas esperanças renasceram e aquela confiança que estava por um fio se fortaleceu. Quando, no mesmo ano de 2022 recebi a notícia de que eu e minha filha estávamos amparadas pelas Medidas Protetivas, tive certeza de que a minha luta por justiça não estava sendo em vão. Então, quando saiu a decisão do juízo desta Vara condenando Geraldo Cassimiro a responder criminalmente pelos seus atos, senti que um peso enorme estava sendo tirado das minhas costas. Agora sei que não sou só eu quem o condena, mas a Justiça também. Agora me sinto representada pela Justiça.

Qual a importância da rede que a amparou neste processo?

Sei como é difícil para uma mulher denunciar as violências cometidas pelo seu marido e pai dos seus filhos, eu mesma demorei muitos anos para ter coragem e denunciar. Por vários motivos suportei os anos de violências, principalmente por medo das ameaças proferidas por ele e pelo seu irmão e advogado, o dr. José Cassimiro, que ameaçavam matar ou sumir com meus filhos. Só tive coragem realmente para denunciar quando meus filhos completaram 18 anos e estavam longe das garras deles. Hoje reconheço que se tivesse conseguido uma rede de apoio, eu e meus filhos não teríamos sido agredidos por tanto tempo. Isso é passado e não tenho como mudar, o importante é falar da rede de apoio que tenho hoje.

O mais importante para mim hoje é saber que não estou mais sozinha nesta luta. Tenho pessoas que me amparam e que me ajudam a seguir em frente. O apoio a mulheres que sofrem ou já sofreram violências é uma das coisas mais importantes para nos ajudar a sair do processo de violências. Sou muito agradecida por ter esse apoio hoje. Sou uma das mulheres acolhidas pelo projeto Fordan, e através desse projeto, pude adentrar em espaços que antes imaginava serem impossíveis para mim. O Fordan encabeça a rede de apoio que hoje tenho, e através do empenho da sua fundadora e coordenadora geral, Rosely Maria da Silva Pires, e de todos os integrantes do projeto, posso contar com o apoio de pessoas que se preocupam com mulheres em situação de violências. O empenho do Fordan/Ufes, do Nudem [Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher], na Defensoria Pública, do Nevid, no Ministério Público e do Conselho Nacional de Direitos Humanos e de outros parceiros do projeto foi crucial para que essa vitória fosse conquistada.

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