Medida protetiva pedida em 2022 pelo pai da vítima foi negada. Postura incentiva o feminicídio, diz pesquisadora
“A Justiça falhou”. A afirmação é o primeiro ponto destacado pela professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Rosely Pires, na análise do caso da médica mineira Juliana Pimenta Ruas El-Aouar, de 39 anos, morta na madrugada de sábado (2) em um hotel em Colatina, norte do Espírito Santo, onde estava hospedada com o marido, o empresário e ex-prefeito de Catuji, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais, Fuvio Luziano Serafim (PL), de 44 anos.
Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais e coordenadora do programa de Extensão e Pesquisa Fordan: cultura no enfrentamento às violências, que, entre outras atividades, acolhe mulheres vítimas de violência doméstica na Grande São Pedro, em Vitória, Rosely afirma que a prática da Justiça brasileira de negar medidas protetivas de urgência (MPUs) a mulheres agredidas tem uma relação direta com o feminicídio e que é preciso mudar essa cultura machista dentro do Judiciário para reduzir as mortes de mulheres.
No caso da médica mineira, o pedido havia sido feito há um ano pelo pai, o também médico Samir Sagih El-Alouar, de 70 anos, ex-prefeito e ex-vereador em Teófilo Otoni pelo PP. “O pai relata que se tivesse conseguido a medida protetiva, o caso não teria chegado a esse ponto, de um feminicídio. A Justiça negou uma medida protetiva a uma vítima, porque não confiou na palavra de um pai. A medida protetiva é uma medida cautelar, é uma primeira segurança. Se a justiça nega essa primeira segurança, esse agressor entende que pode continuar investindo na violência contra ela”, avalia Rosely.
“O pai dela é uma autoridade na cidade, ex-vereador, ex-prefeito, médico renomado. Se uma pessoa com todas essas possibilidades teve uma medida protetiva negada da Justiça, o medo dessa mulher aumenta muito mais. Muitas mulheres não denunciam porque têm medo de que a violência aumente”, explana.
A pesquisadora cita os dados do Anuário Brasileiro da Segurança Pública que mostram, para o período entre 2020 e 2021, mais de 20% de negativas de MPUs. “Quase um milhão de mulheres solicitaram medida protetiva e mais de 200 mil não receberam. E o Espírito Santo é um dos estados onde houve maior percentual de negativas, 26%, e maior aumento de feminicídio“, informa.
Alguns desses casos de desamparo pelo Estado são acompanhados pelo Fordan. “No Fordan a gente tem muita essa ausência da Justiça: quando solicitamos as medidas protetivas e não as temos deferidas; quando numa audiência a mulher solicita a medida protetiva e é constrangida; quando no boletim de ocorrência é descrito tudo o que o agressor fez e na medida protetiva muito desse relato não aparece. Não há escuta da mulher, do sofrimento da mulher, há um pré-julgamento que ameaça a vida dessa mulher. A ausência da justiça na proteção solicitada pela vítima é uma violência institucional que fortalece o agressor”.
Misoginia como política pública
A situação fica ainda mais cruel quando há um contexto político que incentiva a misoginia. “A violência e morte de mulheres é uma política de investimento numa cultura de homens misóginos, obedientes, dóceis e submissos à soberania dos campos políticos autoritários, como foi o período do governo Bolsonaro”, diz, citando trecho do livro sobre sua pesquisa de doutorado, em que ela descreve o tráfico de bailarinas italianas no Brasil do Século XIV e mostra como essa política pública misógina continua presente, quando por exemplo, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) aplica somente R$ 1 milhão dos R$ 20 milhões do orçamento para combate à violência contra a mulher e outras situações, cita a pesquisadora.
O ex-prefeito Fuvio, salienta, é um exemplo de homens que se aproveitam desse contexto. “Ele é um político bolsonarista, que pregava slogans como ‘Deus, pátria e família’. É preciso pensar na formação desses homens, agressores, com discurso de ódio, que foram fortalecidos por uma gestão federal em que a violência contra a mulher era uma política pública”.
Aplicativo
Uma ferramenta para contornar essa falha do Judiciário, conta, é um aplicativo, que está sendo elaborado com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes). O lançamento do Aplicativo, informa, será no dia 22 de setembro, no Teatro da Universidade Federal do Estado (Ufes), com apoio do Ministério da Igualdade Racial, visto que ele tem como um dos públicos prioritários as mulheres negras e periféricas, que, segundo análise do Fordan, correspondem a 85% dos feminicídios ocorridos no Estado no período avaliado pelo Anuário.
“Pelo aplicativo, a mulher pode solicitar a medida protetiva sem passar pelos constrangimentos que costuma sofrer na Justiça e na delegacia. E o documento também vai ser entregue para ela pelo aplicativo. Isso faz muita diferença, porque muitas vezes, quando o oficial de Justiça entrega na casa dela, quem recebe é o agressor. Tendo a medida protetiva na mão, mesmo que o agressor receba também, ela já sabe que está com a proteção e que pode chamar a polícia”.
Prevenção
A acadêmica não perde de vista o reconhecimento sobre a atuação correta da Polícia e do Judiciário capixaba ao prender Fúvio e seu motorista, Robson Gonçalves dos Santos, depois de flagrar a situação em que encontrou o corpo da médica no quarto de hotel, com nítidos sinais de tortura e assassinato, mas clama pela necessidade de que medidas preventivas também comecem a ser empreendidas.
“Fica um elogio para a polícia, que prendeu ao agressor, e do juízo de Colatina, que negou o pedido de liberdade, não permitindo que ele voltasse para Minas Gerais sem efetuar a prisão. Agora, a gente espera que o estado do Espírito Santo possa fazer toda a investigação e não deixar esse crime impune, para provar que o nosso Estado, embora seja um dos mais violentos contra as mulheres, mostre que nesse momento há uma mobilização, um trabalho para sim investigar, prender e proteger a mulher vítima de violência. E isso inclui uma mudança de postura diante das solicitações de medidas protetivas”.