A juíza Richarda Aguiar Littig, da 3ª Vara da Infância e Juventude de Vitória, determinou a suspensão da instrução de serviço que regulamentava o uso de armas de fogo por agentes do Instituto de Atendimento Socioeducativo (Iases). A decisão é resultado de uma Ação Civil Pública (ACP) proposta pelas Coordenações da Infância e Adolescência e de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), ajuizada em dezembro de 2022.
Em sua decisão, a magistrada determinou ao Estado do Espírito Santo e ao Iases que “se abstenham de adquirir armas de fogo ou munições com recursos públicos”. Também destacou que ambos “são impedidos de fornecer aos agentes socioeducativos armas de fogo e munições de propriedade estatal”, que “se abstenham de realizar qualquer alteração arquitetônica (reforma/construção) nas Unidades Socioeducativas para acautelar armas de fogo e munições” e “se abstenham de utilizar arma de fogo nas unidades socioeducativas e em qualquer atividade relacionada a socioeducação/sistema socioeducativo”.
Na ação, a Defensoria argumentou que a medida é inconstitucional, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), e apresentaria riscos de grave violação a direitos fundamentais de adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas restritivas de liberdade no Estado. De acordo com a Instituição, caso os agentes do Iases pudessem utilizar armas de fogo nas atividades socioeducativas, haveria um desvirtuamento do sistema socioeducativo capixaba.
A juíza, na sentença, concorda com o argumento da Defensoria de que o porte de arma para agentes socioeducativos pode apresentar riscos. “No caso vertente, entendo que as alegações da Requerente revelam a probabilidade do direito pretendido, posto que traz aos autos vasta documentação que, pelo menos em sede de cognição sumária, milita em seu favor, sobretudo para resguardar o direito à vida, integridade física e dignidade dos adolescentes e jovens privados de liberdade e de toda comunidade socioeducativa”, diz.
A magistrada menciona o Estatuto da Criança e do Adolescente, que “trouxe a concepção da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, prevista em seu art. 1º, a qual visa o melhor interesse da criança e do adolescente, devendo o aplicador do direito buscar sempre o que for melhor para o infante e para o adolescente”. O artigo ao qual a juíza se refere “dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, que é resguardada constitucionalmente e dotada de absoluta prioridade, nos ditames do art. 227 da Constituição Federal”.
O artigo 227, por sua vez, prevê que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Também consta na decisão que “mostra-se necessária e urgente que sejam determinadas todas as medidas que possam evitar, desde já, a ocorrência dos fatos narrados, tendo em vista o grave indício de violação aos direitos fundamentais dos socioeducandos. Ademais, tal instrução de Serviço de cunho Estadual que dispõe acerca de utilização de armamentos letais por parte de agentes socioeducativos, cuja incompetência legislativa tem sido objeto de reconhecimento amplo pelos tribunais Pátrios, dentre os quais destaco Decisão do Superior Tribunal Federal”.
Polêmica
Na ocasião da aprovação do PLC algumas entidades se manifestaram contrárias. O militante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) Gilmar Ferreira afirmou que “é um projeto que amplia a circulação de arma, que interessa à indústria bélica, um projeto de morte”. O Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente divulgou uma nota de repúdio ao projeto.
“Armar agentes socioeducativos é desconsiderar a doutrina da proteção integral anunciada na Constituição Federal de 1988, no art. 227 e consagrada no Estatuto da Criança e do Adolescente (8.069/90). É rasgar as normativas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase (Resolução 119 Conanda, e Lei 12.594/2012)”.
Para o Fórum, a proposta “é mais uma estratégia de militarização do sistema socioeducativo”. A entidade recorda que, nesse sistema, já foi implantado o uso de tecnologias chamadas de não letais, mesmo diante da posição contrária do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) e do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente (Criad).
O Fórum destacou que, em março deste ano, o STF invalidou normas estaduais que autorizavam o porte de arma para procuradores estaduais. “O entendimento da Corte é de que os estados não podem legislar sobre a regulamentação, fiscalização e porte de arma de fogo, por ser tema de competência privada da União”.
O Criad também divulgou nota de repúdio em que “afirma seu posicionamento contrário ao armamento dos servidores, por entender que haverá casos de abusos e violências que não poderão ser investigados, pois a violência psicológica não deixa marcas para que possam servir como provas e responsabilizar aqueles envolvidos nessas ações, e ainda destaca que armar os agentes socioeducativos deixa em aberto as possibilidades de uso abusivo da força e violência, colocando em xeque toda a proposta socioeducativa por promover nos adolescentes, o sentimento de injustiça, medo, revolta, insegurança, humilhação e vergonha”.